Muitas são as formas de passarmos pelo mundo. Muitos são os caminhos, obstáculos, realizações. Mil são as nossas colinas diárias a serem transpostas. Do alto de cada uma delas, podemos observar nossos rastros olhando para trás e, adiante, contemplando o horizonte, o que queremos realizar.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Meus oito anos

A galeria de personagens favoritos para quem ama histórias em quadrinhos é imensa. Não me lembro quando tudo começou, mas certamente foi muito cedo. Em casa lia-se muito, e era uma profusão de livros, revistas, gibis, historinhas infantis. Era um tempo em que, durante alguns anos, vivemos em uma chácara, em uma casa de madeira pré fabricada, que era um verdadeiro sonho. Meus pais transformaram aquele espaço em um lugar tão aconchegante que é mesmo difícil de descrever, só mesmo consultando as fotografias da época. Mas havia muitas flores pela casa, pois o jardim era imenso, além da plantação de roseiras que minha mãe mantinha para fornecer às floriculturas locais. Havia quadros e enfeites, resultado das viagens que meu pai, aviador, trazia, sua coleção de cinzeiros espalhados por todos os móveis, o toca discos que tocava boleros. Uma estante cheia de livros e bibelôs. E um jardim que rodeava a casa, com gramado, bancos, balanços, uma casa na árvore, feito por meu pai e meu avô paterno, carpinteiro e uma pequena piscina. Horta, pomar, cachorro, gato, galinhas... No início não tinha energia elétrica e nos virávamos - meus pais, meu irmão e eu - à luz de velas. Depois veio um lampião a gás, instalado no centro da sala, depois um gerador de energia elétrica e por fim a energia que chegava de um poste instalado na entrada da chácara. Assim, as noites transcorriam à meia luz, com histórias contadas pelo seu Zé, o caseiro, muitas de arrepiar e tirar o sono das crianças, mas que adoravam ouvi-las. Como não havia televisão, lia-se. Era a época dos gibis da Disney. Me lembro hoje de algumas palavras que aprendi lendo Tio Patinhas: oráculo, Patagônia, Timbuctu. Lia Luluzinha e Bolinha, Bolota, Riquinho, Brotoeja.

Minha personagem favorita era a Maga Patalógica. Mais tarde compreendi porque, mas acho que naquela época já me atraía nela o fato de ela viver sozinha (tinha somente como companhia o corvo-lacraio-pombo-correio Laércio) e independente em um castelo, aos pés do Vesúvio e deslocar-se rapidamente por todo o planeta com a sua vassoura. De solto alto e sem desmanchar o penteado Chanel ou amarrotar seu lindo little black dress. Um luxo!!




Nas férias, na casa dos avós maternos, não era diferente. Cansada da correria com os primos, buscava refúgio nos gibis da Marvel, coleção do meu tio que hoje pertence a uma das primas. Capitão América, Homem Aranha, Super Homem, Fantasma, Mandrake, Hulk, Homem Submarino... Depois de ler tudo aquilo, fabricava eu mesma as minhas histórias, uma mistura do que lia a partir das aventuras do Tio Patinhas com os super heróis.

Mais à frente, vieram os Asterix. A coleção ainda está guardada, à qual acrescentei volumes em francês e alemão, quando vivi nesses dois países.

Uma infância que foi uma preciosidade: casa na árvore, jardim, bicicleta, bichos de estimação, espaço, liberdade, gibis, meus pais, meu irmão. Já naquele tempo adorava a poesia do Casimiro de Abreu, Meus oito anos. Talvez já prenunciando a saudade que sentiria de tudo aquilo anos mais tarde.


Meus oito anos

Oh ! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais !
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais !

Como são belos os dias
Do despontar da existência !
– Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor !

Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar !
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar !

Oh ! dias de minha infância !
Oh ! meu céu de primavera !
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã !
Em vez de mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã !

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
De camisa aberta ao peito,
– Pés descalços, braços nus –
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis !

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo,
E despertava a cantar !

Oh ! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais !

– Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais !
Casimiro de Abreu

Do livro  As Primaveras, de Casimiro de Abreu, publicado em 1859 (conheci esse poema na coleção Mundo da Criança).



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