Diários de campo, Relatos de Viagens, Livros-Reportagem, Jornalismo
Literário[1]
Andréia T. Couto
Malinowski
passou meses entre os Trobriandeses do Pacífico Sul e produziu o maravilhoso Os Argonautas do Pacífico Sul; Evan
Pritchard, depois de viver tempos entre os somali nos presenteou com o livro Os Nuer; Lewis-Strauss, em visitas de
pesquisa ao Brasil, fez nascer Tristes
Trópicos; Antônio Cândido, convivendo com os caipiras de São Paulo,
escreveu Os parceiros do Rio Bonito.
Reed, em Os dez dias que abalaram o
mundo, trouxe aos leitores os detalhes da revolução bolchevique
inaugurando, para alguns, um misto de relato/reportagem a um tom que beirava o
literário. Para outros, um brasileiro, Euclides da Cunha, já o fizera anos
antes, com Os Sertões. Ryszard Kapuscinski,
apesar de vinte anos de vivência pela África, pareceu não compreender muito de
seu povo, pelo menos é que se percebe em Ébano,
editado em 2005 pela Companhia das Letras (lançou recentemente um relato sobre a Índia); Marinovich e Silva reportam
ao leitor os tempos trágicos do appartaid sul africano nos anos 1990, em O clube do bangue bangue (Companhia das
Letras, 2003).
O que esses
autores e livros têm em comum? Malinowski, Pritchard, Levi-Strauss eram
antropólogos e de seus diários de observação de campo fizeram surgir clássicos
da antropologia que deleitam leitores de qualquer área, curiosos de outros
culturas e costumes. Cândido, sociólogo, através de uma linguagem clara,
consegue aliar a objetividade acadêmica à prosa que beira a literatura. Não por
acaso sua maestria com as palavras, aliada à observação, o levou ao campo
literário, a cuja pesquisa se dedica até hoje. Reed, Cunha, Kapuscinski,
Marinovich e Silva são jornalistas. O que os une é a destreza com que
conseguiram, uns mais, outros menos, unir o senso de observação à sensibilidade no trato com a palavra.
E a meu ver o que poderia unir ainda Malinowski e Cândido foi serem ambos os
autores dos dois títulos mais bonitos e expressivos que já encontrei até hoje.
Penso que qualquer escritor gostaria de ter escrito algo que levasse esses
títulos.
Em meio a
esses autores, poderíamos colocar os relatos de viagem, essa saborosa
literatura que leva os que, por alguma limitação, não podem percorrer os
lugares visitados pelos autores, normalmente não somente “visitados”, mas
também recheados de algo inusitado, de aventura, ou até mesmo de perigo. Entre
nós, Amir Klink é um dos bons. Li Cem
dias entre o céu e o mar, sua incrível travessia entre as costas africana e
brasileira feita solitariamente em um pequeno barco assustadoramente pequeno
para uma empreitada daquela envergadura. Lembro-me da data em que li: novembro
de 1991. Desde então Klink realizou outras viagens de aventura, todas muito bem
documentadas (e com barcos maiores e melhor equipados) e, embora Paratyi seja
muito bom, Cem dias entre o céu e o mar
é impressionante.
Todos aqueles
que já realizaram pesquisa de campo na área acadêmica sabem bem o que é um
caderno ou diário de campo. Por mais que os lap tops estejam tomando cada vez
mais o lugar das pequenas cadernetas de anotações (os pesquisadores de hoje –
os que conseguem financiamento, que fique bem claro - vão para campo munidos
hoje de moderna tecnologia e os cadernos cederam lugar ao computador, mesmo
porque o pesquisador precisa dele para “descarregar” suas fotos digitais) ainda
não conseguiram dispensar totalmente o diário. O antropólogo Carlos Rodrigues
Brandão, de quem fui aluna no mestrado no curso de Antropologia Social, na
Unicamp, e com quem aprendi muito do gosto pela pesquisa de campo, tem até
mesmo um livro chamado Diário de campo,
inspirado naturalmente nas suas inúmeras viagens de pesquisa pelo interior de
Goiás e Minas Gerais. E com direito a poesias, pois Brandão também é poeta. E o
diário de campo é isso: um misto de anotações objetivas das observações diárias
da pesquisa (falas dos entrevistados, relatos, entrevistas; observações
pessoais; números, tabelas; lembretes; fotos; colagem de recortes de jornal)
com desabafos do pesquisador e inserções pessoais, muitas vezes uma espécie de
“diário íntimo” (considerando-se que é à noite, de regresso de um dia inteiro
de pesquisa, muitas vezes percorrendo enormes extensões, que se coloca em dia o
diário, não é difícil imaginar o caráter intimista que ele pode trazer). Pois o
“diário” nos acompanha às vezes por meses, conforme a duração da pesquisa, a
ponto de tornar-se quase um objeto-fetiche. Não é à toa que de alguns surgiram
bons e interessantes livros.
Assim nascem
os relatos de viagem: desde a data da partida, o viajante desembolsa sua
caderneta, ou caderno – ou, claro, o seu lap top – e vai aí, desde o aeroporto,
lançando as primeiras impressões da viagem/aventura que se inicia. Às vezes
começa-se o relato durante os preparativos da viagem, contando todos os
pormenores da preparação. Quanto mais distante e desconhecido e do grau de
dificuldade do acesso ao destino, mais demorada e minuciosa é o preparo.
Normalmente começa com uma extensa lista do que levar, separada por assunto:
medicamentos/vacinas; visto, documentação/ contatos, telefones e endereços de
embaixadas e consulados locais; mapas, guias do lugar. A lista é enorme e tudo
tem que caber em um espaço relativamente pequeno. Daí a importância fundamental
da lista (dois itens básicos não devem faltar jamais: sandália de borracha e
sabonete líquido. Viaje sem eles e saberá porque).
Da mesma forma
que os diários de campo da pesquisa acadêmica, os relatos de viagem são sempre
bem documentados e datados para que as verdades aí lançadas possam ser
futuramente comprovadas. Muitas vezes são complementados com documentação
bibliográfica sobre os lugares de sua passagem.
Inaugurado ou
não por Reed, o fato é que foi a partir de A
sangue frio, de Trumann Capote, que surge o jornalismo literário. Embora os
métodos de Capote possam ser passíveis de serem contestados, seu livro nasceu
sob a égide de um novo gênero de jornalismo ou de literatura ou de mescla dos
dois. A partir de então a lista é exaustiva e ultimamente tem muito jornalista
passando meses em terras distantes e “exóticas” para dali trazerem material que
possa servir de matriz para um livro reportagem. Rentemente a Companhia das
Letras lançou ...., de uma jornalista norueguesa que passou dois meses com uma
família afegã. O lançamento do livro veio acompanhado de um processo que corre
contra ela por parte do chefe do clã onde esteve hospedada, contestando a
veracidade das afirmações que faz no livro. Também pela mesma editora, Uma temprada de facões, de Jean
Hatzfeld, sobre o genocídio de Ruanda através de relatos de prisioneiros,
lançado em 2005. Se são realmente “literários”, isso alguns deixam a desejar. O
leitor que se interessar por esse estilo tem agora uma lista considerável a ser
degustada durante as férias de verão. Boa viagem!
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