A Calopsita amarela
“Procuro uma calopsita amarela”.
Depois,
um nome e um número de telefone para contato.
No
meu trajeto voltando para casa, em uma praça no final da avenida, essa faixa me
chamou a atenção. Calopsita...
Calopsita
pra quê? Pra fazer o quê?
Ela
fugiu?
Ou
a pessoa está à procura de uma calopsita pra comprar?
Calopsita...é
animal, vegetal ou animal?
Calopsita...é
vegetal:
Um
tipo de bromélia.
Do
tipo que gosta de sombra, que não pode com sol.
Deve
ser, amarela...se ao menos fosse verde, e com rajadas brancas...não haveria
dúvida, é uma parente das bromélias, orquídeas, sei lá, nunca fui boa em
classificar espécies de plantas, sei muito bem distinguir rosas, margaridas,
cravos, dálias, lírios, jasmins, crisântemos, coisas assim populares, mas
quando a lista se aprofunda em amarílis, anêmonas (que também pode ser um
animal!), centáureas, narcisos, madressilvas, íris, prímulas, aí confesso minha
completa ignorância.
Mas
com esse nome, deve ser: primeiro, rara, segundo, da família das bromélias. Da
frase constante na faixa pode-se também depreender que, se ele procura amarela
significa que há outras, de outras cores.
Um
famoso botânico, morador do bairro e pesquisador da universidade nas cercanias
do lago onde a faixa se encontrava, me diria, “Sim, é mesmo uma planta, uma
flor da espécie das caliceráceas. Uma planta rara, típica dos climas quentes e
úmidos, coisa dos trópicos. Muito procurada. Pouco encontrada”. Daí o anúncio
ansioso em um faixa no final de uma avenida movimentada de um bairro classe
média alta, pois por ali passam pessoas viajadas, pessoas sábias, acadêmicos,
biólogos, geólogos, pessoas que certamente teriam informações precisas sobre
onde encontrar uma calopsita amarela. E se por acaso ela tivesse sido
seqüestrada do jardim de uma casa, estas pessoas, com apenas um olhar de
reconhecimento, saberiam informar ao angustiado solicitante sobre o paradeiro
de sua famosa e ambiguamente desconhecida calopsita fujona.
Calopsita...
Calopsita
amarela
Não,
deve ser mineral, do tipo que brilha.
Calopsita,
cassiterita, rubelita... É, como um cristal colorido: essa, a calopsita
procurada, deve ser rara, como um belo, bem lapidado, reluzente e
amarelo-alaranjado topázio.
A
mulher foi dar uma volta ao redor do lago e, distraída, conservou no dedo o
precioso anel com uma calopsita cravada um forma de cabochão que havia usado na
noite anterior. Em uma das voltas, a pedra, não muito firme nas delicadas
garras de ouro branco do solitário se desprendeu e, ao chegar em casa, horror!
Só havia o aro com as garras escancaradas, como um ninho sem ovo.
Por
isso o aviso de procura-se bem perto do lago, local onde as moças vão fazer
suas caminhadas no final da tarde e as senhoras no início do dia.
Calopsita...
Não,
é animal!
Alguma
coisa assim, como um animal em extinção: um ser voador, um calóptero, aquele
que tem lindas asas, ou, ao contrário, uma ave de asas horrendas e pontiagudas
como um pterodátilo, ou então um animal das profundezas do oceano, ou uma
espécie de cachalote, ou ainda algo que dá – ou dava – no fundo do mar. Dá para
imaginar um diálogo entre oceanógrafos-pesquisadores-caçadores-de-tesouros:
“Vamos embarcar no próximo Calipso para caçar a calopsita”.
Mas
como podem as pessoas ser tão ignorantes na sua própria língua?
Que
sejam ignorantes em alemão, vá lá, mas na sua língua, trazida há séculos do
Lácio e aqui reproduzida com o auxílio de tantos outros voluntários
lingüísticos.
(por
que não se ensina mais latim e grego pra meninada de hoje? Acaso hoje é menos
importante saber a origem etimológica da palavra calopsita que décadas atrás?
Nesse ritmo, daqui um tempo basta saber uga, uga para designar todos os
objetos, e a preciosa calopsita amarela vai ser pobremente apontada como uma
uga-uga amarela).
Calopsita
é um instrumento musical. Claro! Da família dos instrumentos de sopro. Uma
variante da clarineta. Sua pronúncia onomatopaica já prenuncia o som que se
desprende das formas arredondadas dos orifícios na madeira. E somente mãos
finas e delicadas, acostumadas ao manuseio preciso e respeitoso desse
instrumento musical podem tocá-la.
O
anúncio foi sabidamente colocado à borda da praça que se avizinha ao lago,
local de moradia de muitos músicos que por ali passam, todos estudiosos de
música erudita que certamente conhecerão não só o paradeiro da perdida
calopsita de som puro como poderão informar ao dono do anúncio onde poderá
encontrar uma, caso esteja à procura de alguma para comprar com o mais sublime
dos sons saindo da madeira amarelada que lhe especifica o nome: a calopsita
amarela.
Mas
alguém poderia me interromper bruscamente e me dizer: escute, por favor, como
você nunca deu uma espiada em uma calopsita, nem quando criança?
-
Como assim?!
-
Ora, nunca mostraram a você uma calopsita, que, à semelhança de um
caleidoscópio, através de um pequeno orifício poderia vislumbrar não só as mais
diversas cores e formas que se compõem conforme seu movimento, mas também,
através de um jogo de imagens, ter a sensação de que os objetos lhe saltam aos
olhos, que você pode mesmo pegá-los no ar, como numa holografia? A calopsita
lhe proporciona todo o prazer do caleidoscópio e ainda holograficamente! E a
calopsita amarela faz isso mostrando ao espectador toda a gama de tons amarelos
que já foram captados pelo olho humano! Uma preciosidade. É isso que poderia
informar um sábio professor do instituto de artes próximo ao local onde a faixa
foi colocada.
Mas
não se assanhe. Todo o glamour anterior se esmaece diante da palavra final do
nosso conhecido biólogo, professor doutor com pós doc em uma importante
universidade de Niedersachsen, Alemanha:
“Calopsita,
minha cara, é um vírus raro, que à semelhança dos coliformes, apresenta
aparência cilíndrica, quando examinada na lâmina de precisos microscópios. Uma
vez no organismo humano, ataca o fígado do indivíduo e faz com que muitos
médicos, num primeiro diagnóstico, confundam a aparência amarelada do paciente
como sendo ele um portador de hepatite. Para distinguir os dois tipos de
pacientes, o pessoal médico costuma se referir aos portadores de calopsita como
‘Aquele é um [portador de] calopsita amarela’. Atualmente está sendo levada a
cabo uma importante pesquisa sobre o vírus, portanto há a necessidade de se
encontrar voluntários que apresentam o quadro de portadores da calopsita”.
Acabrunhada
com tantas e importantes informações tão díspares diante da palavra misteriosa,
paro diante da faixa tentando ainda encontrar uma resposta para as indagações
não satisfeitas, mesmo após tantas explicações das quais, dadas as suas
inequívocas procedências, não poderia duvidar. Divagando absorta em meio à
profusão de calopsitas que se assanham na minha mente, não percebo alguém que
se aproxima e pergunta:
-
Então, alguma notícia da Calopsita?
-
Perdão?
-
Calopsita, a irmã loura do Calógenas, desaparecida há dois dias.
Aquilo
foi demais. Ainda incrédula, viro as costas para o desconhecido e me afasto do
local da faixa, disposta a resolver por mim mesma o mistério da calopsita
amarela. E melhor do que ninguém para apaziguar minha curiosidade que o autor
da faixa. Anoto o número do telefone e enquanto me dirijo para casa, penso que
a calopsita bem poderia ser um ET. Isso.
Resolvo
que a calopsita é um ET de olhos esbugalhados, de crânio liso, lustroso,
fosforescente, boca redonda arreganhada, como um Munch pós moderno.
-Alô?
-
Quem fala?
-
.....
-
Tenho uma Calopsita amarela.
-
É mesmo?!!!
-
É. Ela está na janela da minha sala, a boca grudada no vidro, os olhos enfiados
em mim. O que eu faço?
-
Boca?!!
Bateu
o telefone na minha cara. Parece que desconfiou quando eu disse boca, talvez
calopsita não tenha boca. Nem olhos.
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