Muitas são as formas de passarmos pelo mundo. Muitos são os caminhos, obstáculos, realizações. Mil são as nossas colinas diárias a serem transpostas. Do alto de cada uma delas, podemos observar nossos rastros olhando para trás e, adiante, contemplando o horizonte, o que queremos realizar.

domingo, 2 de novembro de 2014


A Calopsita amarela


“Procuro uma calopsita amarela”.
Depois, um nome e um número de telefone para contato.

No meu trajeto voltando para casa, em uma praça no final da avenida, essa faixa me chamou a atenção. Calopsita...
Calopsita pra quê? Pra fazer o quê?
Ela fugiu?
Ou a pessoa está à procura de uma calopsita pra comprar?

Calopsita...é animal, vegetal ou animal?

Calopsita...é vegetal:
Um tipo de bromélia.
Do tipo que gosta de sombra, que não pode com sol.
Deve ser, amarela...se ao menos fosse verde, e com rajadas brancas...não haveria dúvida, é uma parente das bromélias, orquídeas, sei lá, nunca fui boa em classificar espécies de plantas, sei muito bem distinguir rosas, margaridas, cravos, dálias, lírios, jasmins, crisântemos, coisas assim populares, mas quando a lista se aprofunda em amarílis, anêmonas (que também pode ser um animal!), centáureas, narcisos, madressilvas, íris, prímulas, aí confesso minha completa ignorância.
Mas com esse nome, deve ser: primeiro, rara, segundo, da família das bromélias. Da frase constante na faixa pode-se também depreender que, se ele procura amarela significa que há outras, de outras cores.
Um famoso botânico, morador do bairro e pesquisador da universidade nas cercanias do lago onde a faixa se encontrava, me diria, “Sim, é mesmo uma planta, uma flor da espécie das caliceráceas. Uma planta rara, típica dos climas quentes e úmidos, coisa dos trópicos. Muito procurada. Pouco encontrada”. Daí o anúncio ansioso em um faixa no final de uma avenida movimentada de um bairro classe média alta, pois por ali passam pessoas viajadas, pessoas sábias, acadêmicos, biólogos, geólogos, pessoas que certamente teriam informações precisas sobre onde encontrar uma calopsita amarela. E se por acaso ela tivesse sido seqüestrada do jardim de uma casa, estas pessoas, com apenas um olhar de reconhecimento, saberiam informar ao angustiado solicitante sobre o paradeiro de sua famosa e ambiguamente desconhecida calopsita fujona.

Calopsita...
Calopsita amarela
Não, deve ser mineral, do tipo que brilha.
Calopsita, cassiterita, rubelita... É, como um cristal colorido: essa, a calopsita procurada, deve ser rara, como um belo, bem lapidado, reluzente e amarelo-alaranjado topázio.
A mulher foi dar uma volta ao redor do lago e, distraída, conservou no dedo o precioso anel com uma calopsita cravada um forma de cabochão que havia usado na noite anterior. Em uma das voltas, a pedra, não muito firme nas delicadas garras de ouro branco do solitário se desprendeu e, ao chegar em casa, horror! Só havia o aro com as garras escancaradas, como um ninho sem ovo.
Por isso o aviso de procura-se bem perto do lago, local onde as moças vão fazer suas caminhadas no final da tarde e as senhoras no início do dia.

Calopsita...
Não, é animal!
Alguma coisa assim, como um animal em extinção: um ser voador, um calóptero, aquele que tem lindas asas, ou, ao contrário, uma ave de asas horrendas e pontiagudas como um pterodátilo, ou então um animal das profundezas do oceano, ou uma espécie de cachalote, ou ainda algo que dá – ou dava – no fundo do mar. Dá para imaginar um diálogo entre oceanógrafos-pesquisadores-caçadores-de-tesouros: “Vamos embarcar no próximo Calipso para caçar a calopsita”.
Mas como podem as pessoas ser tão ignorantes na sua própria língua?
Que sejam ignorantes em alemão, vá lá, mas na sua língua, trazida há séculos do Lácio e aqui reproduzida com o auxílio de tantos outros voluntários lingüísticos.
(por que não se ensina mais latim e grego pra meninada de hoje? Acaso hoje é menos importante saber a origem etimológica da palavra calopsita que décadas atrás? Nesse ritmo, daqui um tempo basta saber uga, uga para designar todos os objetos, e a preciosa calopsita amarela vai ser pobremente apontada como uma uga-uga amarela).

Calopsita é um instrumento musical. Claro! Da família dos instrumentos de sopro. Uma variante da clarineta. Sua pronúncia onomatopaica já prenuncia o som que se desprende das formas arredondadas dos orifícios na madeira. E somente mãos finas e delicadas, acostumadas ao manuseio preciso e respeitoso desse instrumento musical podem tocá-la.
O anúncio foi sabidamente colocado à borda da praça que se avizinha ao lago, local de moradia de muitos músicos que por ali passam, todos estudiosos de música erudita que certamente conhecerão não só o paradeiro da perdida calopsita de som puro como poderão informar ao dono do anúncio onde poderá encontrar uma, caso esteja à procura de alguma para comprar com o mais sublime dos sons saindo da madeira amarelada que lhe especifica o nome: a calopsita amarela.

Mas alguém poderia me interromper bruscamente e me dizer: escute, por favor, como você nunca deu uma espiada em uma calopsita, nem quando criança?
- Como assim?!
- Ora, nunca mostraram a você uma calopsita, que, à semelhança de um caleidoscópio, através de um pequeno orifício poderia vislumbrar não só as mais diversas cores e formas que se compõem conforme seu movimento, mas também, através de um jogo de imagens, ter a sensação de que os objetos lhe saltam aos olhos, que você pode mesmo pegá-los no ar, como numa holografia? A calopsita lhe proporciona todo o prazer do caleidoscópio e ainda holograficamente! E a calopsita amarela faz isso mostrando ao espectador toda a gama de tons amarelos que já foram captados pelo olho humano! Uma preciosidade. É isso que poderia informar um sábio professor do instituto de artes próximo ao local onde a faixa foi colocada.

Mas não se assanhe. Todo o glamour anterior se esmaece diante da palavra final do nosso conhecido biólogo, professor doutor com pós doc em uma importante universidade de Niedersachsen, Alemanha:
“Calopsita, minha cara, é um vírus raro, que à semelhança dos coliformes, apresenta aparência cilíndrica, quando examinada na lâmina de precisos microscópios. Uma vez no organismo humano, ataca o fígado do indivíduo e faz com que muitos médicos, num primeiro diagnóstico, confundam a aparência amarelada do paciente como sendo ele um portador de hepatite. Para distinguir os dois tipos de pacientes, o pessoal médico costuma se referir aos portadores de calopsita como ‘Aquele é um [portador de] calopsita amarela’. Atualmente está sendo levada a cabo uma importante pesquisa sobre o vírus, portanto há a necessidade de se encontrar voluntários que apresentam o quadro de portadores da calopsita”.

Acabrunhada com tantas e importantes informações tão díspares diante da palavra misteriosa, paro diante da faixa tentando ainda encontrar uma resposta para as indagações não satisfeitas, mesmo após tantas explicações das quais, dadas as suas inequívocas procedências, não poderia duvidar. Divagando absorta em meio à profusão de calopsitas que se assanham na minha mente, não percebo alguém que se aproxima e pergunta:
- Então, alguma notícia da Calopsita?
- Perdão?
- Calopsita, a irmã loura do Calógenas, desaparecida há dois dias.
Aquilo foi demais. Ainda incrédula, viro as costas para o desconhecido e me afasto do local da faixa, disposta a resolver por mim mesma o mistério da calopsita amarela. E melhor do que ninguém para apaziguar minha curiosidade que o autor da faixa. Anoto o número do telefone e enquanto me dirijo para casa, penso que a calopsita bem poderia ser um ET. Isso.
Resolvo que a calopsita é um ET de olhos esbugalhados, de crânio liso, lustroso, fosforescente, boca redonda arreganhada, como um Munch pós moderno.
-Alô?
- Quem fala?
- .....
- Tenho uma Calopsita amarela.
- É mesmo?!!!
- É. Ela está na janela da minha sala, a boca grudada no vidro, os olhos enfiados em mim. O que eu faço?
- Boca?!!
Bateu o telefone na minha cara. Parece que desconfiou quando eu disse boca, talvez calopsita não tenha boca. Nem olhos. 


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