Muitas são as formas de passarmos pelo mundo. Muitos são os caminhos, obstáculos, realizações. Mil são as nossas colinas diárias a serem transpostas. Do alto de cada uma delas, podemos observar nossos rastros olhando para trás e, adiante, contemplando o horizonte, o que queremos realizar.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Jornada de Letras 2015 - AS DUAS FACES DAS MESMAS LETRAS. Palestra Tradução: um diálogo com o mundo

Tradução: um diálogo com o mundo
“Decifra-me ou te devoro”. Esfinge de Tebas

Tradução
“O que quer dizer traduzir? A primeira e consoladora reposta gostaria de ser: dizer a mesma coisa em qualquer outra língua. Só que, em primeiro lugar, temos muitos problemas em estabelecer o que significa “dizer a mesma coisa” e não sabemos bem o que isso significa por causa daquelas operações que chamamos de paráfrase, definição, explicação, reformulação, para não falar das supostas substituições sinonímicas Em segundo lugar, porque, diante de um texto a ser traduzido, não sabemos também o que é a coisa. E, enfim, em certos casos é duvidoso até mesmo o que quer dizer dizer”.
Umberto Eco, Quase a mesma coisa, p. 9, 2007.


Torre de Babel

A tradução na sociedade contemporânea
Vivemos em plena era da globalização, em que a comunicação planetária é a essência do nosso cotidiano. Diariamente recebemos e enviamos mensagens de toda natureza para uma massa gigantesca de pessoas, situação inimaginável cinquenta anos atrás. A todo instante é possível acessar dados oriundos dos mais variáveis conteúdos, saber pormenores deles, conhecer fatos jornalísticos dos países mais distantes, ler os principais jornais do mundo pela internet,  solidarizar-se com vítimas de catástrofes ocorridas do outro lado do planeta, observar o comportamento animal nas regiões mais distantes, assistir guerras, conflitos, deslocamentos de refugiados por todo o globo, conversar com o colega australiano, do outro lado do mundo, pela tela do computador ou do celular.  Tudo isso a um clique. Sob esse ponto de vista, podemos dizer que o nosso diálogo com o restante do mundo se dá basicamente através da tradução. É através dos olhos de outras pessoas que deciframos aqueles que são diferentes de nós. O papel do tradutor, mais do que passar um assunto de um idioma para outro, é o de nos fazer adentrar em outras culturas, outros costumes, outras formas de pensar e ver o mundo. Mais que traduzir, o profissional da tradução ilumina um mundo que, sem ele, seria simplesmente trevas.
Tudo isso é possível, claro, graças ao incrível desenvolvimento tecnológico iniciado principalmente a partir de meados do século XX, mas acelerado de forma incondicional nas últimas três décadas. Sim, o desenvolvimento tecnológico é o principal componente que nos vem à mente quando falamos sobre as facilidades de comunicação e transporte de informação no século XXI. No entanto, um elemento essencial nessa situação raramente é lembrado: de nada adiantaria toda a velocidade e facilidade de acesso à informação se vivêssemos ainda em uma situação da “torre de Babel”: seriam geradas informações que não seriam compreendidas uns pelos outros. Portanto, chegamos ao ponto mais importante do desenvolvimento tecnológico: o componente humano, a comunicação humana.  De que adiantariam todas as facilidades de comunicação se não pudéssemos compreender a mensagem?
Assim, para que serviria eu saber que os jornais Le Monde, El País, Deutsch Zeitung, The New York Tmes, os telejornais BBC, CBN, TV5 Monde, Deutsch Welle estão acessíveis se não compreendesse uma só palavra de seus jornalistas? Sim, vivemos em plena era da tecnologia e da comunicação, e por isso mesmo, nunca se fez tão necessário o estudo de línguas estrangeiras. Nesse momento, o profissional da tradução é peça importante e relevante no mundo pós-moderno. Qualquer profissional que queira ser bem-sucedido em sua área de atuação necessita dominar um ou mais idiomas estrangeiros.
Claro, essa situação sempre se impôs ao ser humano, mesmo se deslocando pelo mundo restrito conhecido nos primórdios dos tempos, ele já sentia a necessidade de comunicar-se com outros povos, outras culturas, fosse para comerciar, para viajar ou mesmo por curiosidade. Há relatos de viajantes desde a Grécia antiga sobre as questões da tradução e ainda de viajantes que se embrenhavam no mundo africano desde tempos imemoriais e tentaram se comunicar com o desconhecido. O suaíli é um exemplo de língua franca utilizada ainda hoje por todo o continente africano, oriundo da necessidade de comunicação que tinham as ancestrais caravanas de comércio que se moviam do Norte pelas costas ocidental e oriental da África.

Os modelos de comunicação
Partindo da premissa de que a tradução é um diálogo com o mundo, ela insere-se como um elemento fundamental no processo comunicativo, havendo a necessidade de representa-la não somente como um fim em si mesma, mas como um esquema comunicativo em que a interação entre os componentes desse processo esteja presente o tempo. Caso isso não ocorra, há o risco de haver “ruídos” nesse procedimento que podem comprometer o resultado final.
Desde a antiguidade, houve propostas de representar modelos de comunicação que dessem >perdurou por mais tempo através da história.
O modelo básico de comunicação foi proposto por Aristóteles (300 a.C.), assumindo que a comunicação se dava da seguinte forma que, como se pode ver, pressupõe apenas um sentido:

Emissor --> Mensagem -->  Receptor

O modelo acima possui caráter linear e enfatiza a transmissão da mensagem.
A comunicação é o princípio básico a se estabelecer em um processo de tradução. Se pensarmos somente no emissor, traduzindo a obra em questão sem levar em consideração os aspectos mais profundos que interagem nesse processo, corre-se o risco de o receptor receber uma mensagem comprometida no seu pleno significado.
Estudiosos da comunicação, como Shannon e Weaver (1949), apresentaram um modelo básico que também procurava ilustrar o processo, inserindo então novos elementos na cadeia comunicativa. Tiveram como base a teoria matemática da informação, originada nas pesquisas de engenharia das telecomunicações. Seu princípio é o seguinte:
“Existe uma fonte ou nascente da informação a partir da qual é emitido um sinal, através de um aparelho transmissor; esse sinal viaja através de um canal, ao longo do qual pode ser perturbado por um ruído. Quando sai do canal, o sinal é captado por um receptor que o converte em mensagem que, como tal, é compreendida pelo destinatário” (Wolf, 1987, p. 114).
Assim, esse modelo linear básico pode ser visto da seguinte forma:

Fonte/aparelho transmissor –> sinal ~~~~~ -->  Receptor -->  Destinatário


A crítica que se faz a esse modelo é que o processo de comunicação consiste em reproduzir uma situação dada, cabendo ao receptor somente recebê-la. Além disso, pressupõe a ideia de um remetente ativo e outro – receptor – passivo, levando assim, a uma impressão de manipulação do destinatário. Somente o ruído é que poderia atrapalhar esse processo, nada mais.
Qualquer ruído nesse caminho poderá comprometer o sucesso da comunicação. Acontece que esse processo não é tão simples assim, ao contrário, é complexo, pois nele entram as variantes culturais, linguísticas, históricas....
O teórico da Comunicação Lasswell (1949) criou um modelo de comunicação verbal, indicando que o processo de comunicação humana se dá de forma também simples e linear, de acordo com o gráfico abaixo:
Esse esquema básico pressupõe que quem envia uma mensagem qualquer utiliza um determinado código, através de um meio para ser recebido por uma determinada pessoa que o compreenderá.
Os teóricos Moles e Meyer-Eppler trazem uma inovação ao apresentarem dois componentes importantes no processo comunicativo: o repertório, tanto do emissor, como do receptor. Assim, em uma tradução, fica agora mais clara a importância que têm certas situações, ao traduzir uma obra: é essencial que o repertório de quem traduz seja o mais completo possível, tanto na língua de saída como na de chegada, para que o seu receptor possa receber, de forma ampla e completa, as informações traduzidas. Para isso, seu repertório, tanto de conhecimento linguístico como de conhecimento de mundo são essenciais.


 Quem?
Diz o que?
Em que canal?
Para quem?
Com que efeito?
Emissor/Comunicador
Mensagem
Canal
Receptor
Efeito
Esse esquema básico pressupõe que quem envia uma mensagem qualquer utiliza um determinado código, através de um meio para ser recebido por uma determinada pessoa que o compreenderá.
Os teóricos Moles e Meyer-Eppler trazem uma inovação ao apresentarem dois componentes importantes no processo comunicativo: o repertório, tanto do emissor, como do receptor. Assim, em uma tradução, fica agora mais clara a importância que têm certas situações, ao traduzir uma obra: é essencial que o repertório de quem traduz seja o mais completo possível, tanto na língua de saída como na de chegada, para que o seu receptor possa receber, de forma ampla e completa, as informações traduzidas. Para isso, seu repertório, tanto de conhecimento linguístico como de conhecimento de mundo são essenciais.

Modelo Linear Básico, de Moles (1958) e Meyer-Eppler (1959):

Emissor           –>                Sinal           –>          Receptor
Repertório do emissor                          Repertório do Receptor


Esse modelo deu origem a outros, pois o processo de comunicação é bem mais complexo do que uma situação linear.
Para tentar chegar a um modelo que conseguisse englobar todos os elementos possíveis no processo de comunicação, surge o modelo influenciado pela cibernética (estudo dos mecanismos de comunicação e de controle de máquinas e nos seres vivos) dos anos 1940, trazendo conceitos como feedback (realimentação, retorno, resposta), levando em conta as interações entre os elementos no processo comunicativo, realizando uma ampliação e uma crítica ao modelo de comunicação humana.

Modelo circular de Schramm (1945-55) e Osgood (1954).
Os autores propõem uma visão interacionista, com feedback e fluxo contínuo de informações, tendo o processo de comunicação experiências comuns de ambos os lados:

Campo de experiência                                                  Campo de experiência
Codificador -->                                                                  -->      Decodificador
Intérprete                                                                                     Intérprete
Mensagem  <--                                                                 <--      Mensagem

Esse modelo pressupõe uma interação através do feedback e fluxo contínuo de informação compartilhada. Também foi passível de críticas, como à ideia de congruência de objetivos entre emissor e receptor, embora tenha continuado como uma presença marcante. Em uma situação de tradução, quanto mais amplo for os campos de experiência de ambas as partes, mais rico será o aproveitamento final.
Quando se fala em tradução, a primeira situação que nos vem à mente é a tradução literária, passando pela tradução técnica e outros usos profissionais. No entanto, muitos se esquecem que a tradução está no nosso cotidiano de forma mais abrangente, e mesmo não sendo profissionais da área, recorremos a ela na nossa formação acadêmica e profissional. Eu mesma sempre me vali dela para a condução da minha vida profissional e acadêmica.
Idiomas estrangeiros sempre me encantaram, e sempre quis ler meus autores favoritos no seu próprio idioma. Na universidade, não temos muita saída: livros acadêmicos, muitos deles acabam sendo lidos no original. Enquanto estava na Alemanha, chegava cedo na biblioteca, separava o material que leria naquele dia e os dicionários, pois sempre tinha sobre a mesa livros em inglês, francês, espanhol e alemão. O que havia em português era praticamente zero.
Portanto meu contato com idiomas estrangeiros veio primeiro por uma fonte de prazer, através da literatura, e depois por uma questão de necessidade, quando ingressei na universidade.
E como leitora de produtos traduzidos, pelo fato de conhecer os idiomas que leio traduzidos, a sensibilidade crítica de reconhecer uma boa tradução é maior. Além disso, um ponto que deve ser ressaltado é que a proximidade entre o seu fazer e a tradução também é essencial.
 Já imaginaram um livro de poesia ser traduzido por quem não é poeta? Alguns grandes escritores foram tradutores de romances.
Na universidade, durante a graduação de Letras, fui monitora de Literatura Brasileira e trabalhei com a obra do poeta modernista Souzândrade, paralelamente à uma disciplina de tradução. Esse poeta brasileiro viveu muitos anos nos Estados Unidos e sua obra é marcada por traços de estrangeirismos, neologismos e aglutinações dos idiomas português/inglês. E quem foram os grandes tradutores e estudiosos da obra de Souzândrade, e responsáveis por sua divulgação e estudos acadêmicos de sua obra no Brasil? Os irmãos Campos, Augusto e Haroldo, conhecidos poetas, semiólogos, tradutores. Souzândrade foi um poeta marcadamente influenciado pela poesia de Ezra Pound, poeta, músico e crítico que, juntamente com T. S. Eliot, participou do movimento da poesia modernista norte-americana do início do século XX. Provavelmente um tradutor de Souzândrade que não tivesse o conhecimento técnico aliado à sensibilidade poética, não poderiam ter feito uma tradução tão interessante da obra desse poeta.
Os irmãos Campos são também conhecidos por se abrigarem sob uma corrente da tradução que acredita, mais do que na tradução técnica, fria, e no caso da tradução de poesia, da obediência total à precisão métrica e de rima da poesia, no resguardo do seu sentido. Porque a tradução de poesia, tarefa das mais difíceis, tem que abranger a essência do significado, marcada pela amplidão concedida pela subversão do significado exato das palavras, e ainda contemplar o esquema métrico, a melodia, a rima, o ritmo do poema. Ao privilegiar um em detrimento do outro, perde-se necessariamente uma das partes. E como lidar com isso, conseguir unir as duas pontas? Segundo os irmãos Campos, recriando o poema. Naturalmente, há controvérsias a esse respeito. Mas a tradução literária enfrenta esses dilemas, e para quem envereda por esses caminhos, acaba se deparando com ele. Não basta simplesmente conhecer a fundo os dois idiomas. Há a necessidade profunda também de conhecer a obra do autor traduzido, seu universo, suas técnicas, o período em que viveu, sua própria vida. Se é um autor ainda vivo, muitos tradutores mantêm contato, conversam, trocam ideias. Imaginem a tradução da obra de Guimarães Rosa, um dos autores brasileiros mais traduzidos para os mais diversos idiomas. Se sua obra já traz para os leitores brasileiros uma miríade de neologismos, falares típicos regionais, muitas vezes indecifráveis para um leitor comum pouco afeito à leitura, imagine conseguir uma tradução “perfeita” para uma língua muito diferente da nossa, com outras raízes, como o alemão, por exemplo.
O tradutor sempre se confronta com situações difíceis e inesperadas e tem que estar pronto para superá-las. Essas situações passam por vários planos, desde expressões idiomáticas, expressões típicas locais, palavras com duplo sentido, trocadilhos, ironias que fazem sentido em uma língua, mas não em outra.... Como superá-los? Por isso que nem sempre somente conhecer o idioma do qual se traduz é suficiente. Uma bagagem cultural sólida é fundamental para buscar o sentido oculto onde menos se espera. Por isso, as soluções de tradução muitas vezes são surpreendentes e podem quase até superar o idioma de partida. Traduzir ipsis literis nem sempre pode dar certo, e ao “respeitar” demais o idioma traduzido corre-se o risco de ter um resultado frio e engessado. Outro fato a ser considerado é que as traduções, assim como o original, “envelhecem”. Vejam, falo isso de forma muito entre aspas. Mais especificamente de obras que carregam fortes traços e marcas linguísticas de sua época, como expressões, gírias. A tradução, ao obedecer isso, em uma determinada época, também acaba carregando nas expressões e gírias correspondentes. Por exemplo, um romance brasileiro da década de 1960 poderia trazer várias gírias típicas e expressões daquela época, como “brotinho”, “é uma brasa, mora”, ou da década de 1970, como “bicho”, o “véio” que a “galera” utiliza hoje em dia. Como traduzir isso? Obedecendo os padrões da época ou “adequando” as gírias às atuais? Vale ainda confrontar várias traduções feitas por diferentes tradutores sobre uma mesma obra, verificar as soluções encontradas por cada um deles.
A título de exemplo, cito Clélia Piza, sobre “Les travailleurs de l´ombre, sobre o lançamento recente de uma nova tradução de Ulisses, de James Joyce:
A primeira tradução é de 1948, feita por dois tradutores e revista por Valery Larbaud e pelo próprio Joyce. A fama do autor, então limitada a pequenos círculos intelectuais, tornou-se mundial, o número de especialistas de sua obra progrediu geometricamente, o francês de agora já não é o da época da tradução e esse conjunto de fatores resultou no novo projeto editorial que reuniu seis tradutores. Um deles escreveu uma espécie de diário desse trabalho em conjunto, que prova quanta exigência, quanto saber, quanta paciência esses travailleurs de l´ombre, trabalhadores da sombra, precisam ter para levar a cabo uma tarefa que parece – mas só parece – não ser das mais árduas.

Experiências noutras línguas
Meu contato com um idioma estrangeiro começou quando eu tinha treze anos e meus pais me matricularam em uma escola de inglês, o CCAA. A partir de então, passei pelo Yazigi e Cultura Inglesa, até ir para a universidade cursar Letras, influenciada pelo gosto que tinha pelo idioma inglês. Durante o colégio, tive aulas de francês e inglês na escola pública em que estudava, em Araçatuba.
Quando criança, havia muita revista em espanhol em casa, pois meu pai, aviador, colecionava edições sobre aviação que na época chegam somente em espanhol. Curiosa, ia lendo, tentando daqui e dali, consultando dicionários e quando percebia, lia a revista inteira.
Antes de entrar na faculdade, comecei a estudar francês por conta própria, com base do que aprendia na escola, a partir de um material que meu pai tinha em casa, quando havia estudado esse idioma no colégio. Paralelamente ao curso de inglês, que continuava fazendo.
Iniciei o curso de bacharelado em tradução em 1982 na Universidade Federal de Ouro Preto, pois pensava em trabalhar na área.
Na universidade fiz curso de francês e esse idioma passou também a me interessar de uma maneira mais profunda. Ainda durante o curso de Letras, iniciei o curso de italiano, proposto como curso de extensão, na universidade. Mais tarde, já no mestrado, mudei-me para a Alemanha, desembarcando no país com o idioma no nível zero. Comecei trocando aulas português/alemão com uma jornalista vizinha até iniciar o curso formal na Wolkshochshule (gratuito, mantido pela prefeitura de Braunschweig, onde residia), curso intensivo de quatro horas diárias, cinco dias por semana. O curso, a vivência no país, os novos amigos forçaram o desenvolvimento relativamente rápido do idioma. Durante o tempo em que estive na Alemanha fiz o intermediário no Instituto Goethe, na cidade de Freiburg, uma cortesia para cônjuges de bolsistas do governo alemão; aproveitei o preparatório para o Toefl, que era gratuito na universidade e afinei o espanhol, pois convivia com amigos de língua espanhola da Espanha e de vários países da América Latina. Finalizei a etapa do curso de alemão com o avançado oferecido pela universidade. Durante dois anos, praticamente todos os dias, estudei gratuitamente o idioma alemão nas cidades em que residi.
Voltando da Alemanha, fiz o curso de francês no Instituto de Estudos da Linguagem, na Unicamp e me preparei, na Aliança Francesa, para o certificado. Estava a caminho de fazer meu doutorado na França, na Universidade Paris X. Na França, novo desafio, assistir aulas e seminários em francês, discutir com o orientador, escrever relatórios... paralelamente, o círculo foi aumentando, com amigos, colegas, professores. Se na Alemanha convivia muito com a língua espanhola, juntamente com a alemã, na França o convívio foi com a língua árabe, pois tinha muitos amigos do norte da África e quando saíamos juntos, o idioma falado era o árabe. Quando viajei para o Marrocos, foi uma família árabe quem me recebeu. Claro, eu não falava, nem entendia nada, salvo algumas poucas palavras isoladas, mas a sonoridade do idioma, totalmente novo para mim, foi um encanto. De volta ao Brasil, quis estudar mais esse idioma, mas acabei desistindo.
Algum tempo depois, para dar andamento a uma pesquisa, passei quatro meses na África Central, em Ruanda. Fui tranquila em relação ao idioma, pois uma das línguas oficiais do país é o francês, mas uma parcela da população fala também - ou somente - o inglês, inclusive seu presidente e parte do seu staff. Linguisticamente, foi uma experiência incrível. Na universidade, os alunos falam sua língua materna, o kirnyawanda, o francês, língua oficial do ensino, o inglês, pois alguns professores são estrangeiros, como canadenses não franco fônicos, suíços, americanos, alemães. Portanto, o estudante que ingressar na universidade em Ruanda deve necessariamente, dominar três línguas. Acontece que muitos deles falam também o suaíli, língua franca falada por toda a África, além de alguns trazerem para sua experiência universitária idiomas falados em suas pequenas vilas. Enfim, o africano, forçado principalmente pelo processo colonizador, acabou tendo que conviver com dois ou mais deles no seu cotidiano e o africano de cidades grandes, universitário, fala de dois a três idiomas. Animada com mais uma possibilidade, acabei estudando suaíli e de volta ao Brasil me matriculei em um curso no IEL da Unicamp, que durou um ano. É um idioma bastante complexo e domino gramaticalmente somente seus rudimentos, mas compreendo, a partir da oralidade, várias situações contextuais.



Cristóvão Colombo e a descoberta da América -
Um caso de desrespeito histórico com a língua “do outro”
Assim, traduzir é trazer ou levar o mundo do outro. Pode ser o mundo da poesia, da literatura, da informação jornalística, do conhecimento científico, dos fatos da história, das viagens de turismo. Para cada um, uma maneira diferente de operar a ferramenta, de conduzi-la de forma a que o resultado final seja o melhor, o mais compreensível possível. Para tanto, não basta somente dominar o idioma do outro, em termos técnicos, mas principalmente, conhecer profundamente sua cultura, onde repousam suas raízes linguísticas.
Trago aqui uma história exemplar daquele que é considerado uma das grandes figuras da história, Cristóvão Colombo. Tido por uns como um dos maiores heróis do passado, o Almirante Colombo é o imponente navegador dos séculos XV e XVI.
Em sua obra A conquista da América, Todorov (1991) nos apresenta outra face de Colombo, pouco conhecida pelo público em geral. Como legítimo representante europeu do “mundo civilizado” de sua época, Colombo é fruto da Europa de seu tempo, de suas crenças, do homem católico, temente a Deus e alucinado por ouro. E como tal, trazia em si a contradição de uma época que se confrontava de um lado com a inquisição enquanto que de outro inevitavelmente se deparava com transformações históricas e científicas irreversíveis. Enfrentou a ira da igreja católica em pleno momento da Inquisição tentando provar sua teoria de que a terra era redonda e só não teve um fim trágico devido às suas boas relações com o clero. Para conseguir financiamento para sua empreitada ao novo mundo, jurou aos reis de Espanha que voltaria com os navios abarrotados de ouro; ao clero e aos reis, tementes a Deus, que levaria a palavra de Deus onde quer que aportasse. Cumpriu ambas as promessas.
Colombo, durante o longo tempo em que passou de ilha em ilha no novo mundo, pouco interesse demonstrou pela diversidade linguística que encontrava pelo caminho, tampouco com as diferentes culturas com as quais se deparava. Em sua visão etnocêntrica, esses “outros” que cruzavam o seu caminho eram vistos como “coisas”, nunca dignos de respeito ou curiosidade de natureza cultural ou linguística. Prova disso são os escritos de seus Diários, em que os indígenas são mencionados ora como empecilho às suas empreitadas, ora como serviçais a postos da coroa espanhola. Jamais como pessoas, dignos representantes e possuidores legítimos das terras que, sem qualquer cerimônia, nomeava e tomava posse.
Ávido por tomar posse das terras recém “descobertas” e para notificar seu feito aos reis da Espanha, tratava logo de nominar aquilo que descobria, pouca importância dando se as terras em que pisava já pertencessem a alguém, tampouco se já tinham algum nome:
“Toda a dimensão de intersubjetividade, do valor recíproco das palavras (...) do caráter humano, e, portanto, arbitrário, dos signos, lhe escapa”. (p. 28).
Todorov, em seu livro nos relata episódios que, se não fossem tristes sob a perspectiva histórica, seriam hilários do ponto de vista linguístico: sua primeira experiência no novo mundo revela uma enorme população desconhecida, para a qual lê um enorme discurso, avisando aos locais que aquela terra pertence, a partir daquele momento, à coroa espanhola. Tudo isso diante da massa de indígenas que o ouvem, curiosos e sem compreenderem uma só palavra, de que estavam sendo usurpados de suas terras.
“O primeiro ato de Colombo em contato com as terras recentemente descobertas (consequentemente, o primeiro contato entre a Europa e o que será a América) é uma espécie de ato de nominação de grande alcance: é uma declaração segundo a qual as terras passam a fazer parte do reino da Espanha. Colombo desce à terra numa barca decorada com o estandarte real, acompanhado por dois de seus capitães, e pelo escrivão real, munido de seu tinteiro. Sob os olhares dos índios, provavelmente perplexos, e sem se preocupar com eles, Colombo faz redigir um ato. “Ele lhes pediu que dessem testemunho de que ele, diante de todos, tomava posse da dita ilha – como de fato tomou – em nome do Rei e da Rainha, seus senhores...” (11.10.1492) (Todorov, p. 28).
Em determinado episódio, tendo aprendido o vocábulo indígena “cacique”,
“Preocupa-se menos em saber o que significa na hierarquia, convencional e relativa, dos índios, do que em ver a que palavra espanhola corresponde exatamente, como se fosse óbvio que os índios estabelecem as mesmas distinções que os espanhóis; como se o uso espanhol não fosse uma convenção entre tantas, e sim o estado natural das coisas” (p. 29).
A correspondência adequada entre as palavras de línguas diferentes parece não causar nenhum embaraço ao conquistador, uma vez que, para ele, o aspecto cultural não existe.
“Até então, o Almirante não pudera compreender se esta palavra (cacique) significava rei ou governador. Eles tinham também uma outra palavra para os grandes, que chamavam nitayno, mas ele não sabia se designava um fidalgo, um governador ou um juiz” (Diário, 23.12.1492, apud Todorov, op. Cit., p. 29).
“Não será nada surpreendente notar a pouca atenção que Colombo dá às línguas estrangeiras. Sua reação espontânea, nem sempre explícita, mas subjacente a seu comportamento, é que, no fundo, a diversidade linguística não existe, já que a língua é natural. O que se torna ainda mais surpreendente na medida em que o próprio Colombo é poliglota, ao mesmo tempo desprovido de língua materna: pratica tão bem (ou tão mal) o genovês, quanto o latim, o português e o espanhol; mas as certezas ideológicas sempre souberam superar as contingências individuais” (p. 29).
“Colombo não reconhece a diversidade das línguas, e, por isso, quando se vê diante de uma língua estrangeira, só há dois comportamentos possíveis, e complementares: reconhecer que é uma língua, e recusar-se a aceitar que seja diferente, ou então reconhecer a diferença e recusar-se a admitir que seja uma língua... Os índios que encontra logo no início, a 12 de outubro de 1492, provocam uma reação do segundo tipo: ao vê-los, promete: ‘Se Deus assim o quiser, no momento da partida levarei seis deles a Vossas Altezas, para que aprendam a falar’ (esses termos chocaram tanto os vários tradutores franceses de Colombo que todos corrigiram ‘para que aprendam nossa língua’). Mais tarde conseguiu admitir que eles têm uma língua, mas não chega a conceber a diferença, e continua a escutar palavras familiares em sua língua, e fala com eles como se devessem compreendê-lo, e censura-os pela má pronúncia de palavras ou nomes que pensa conhecer” (p. 30).
Ainda segundo Todorov, “o que choca e surpreende é o fato de Colombo agir o tempo todo como se entendesse o que lhe dizem, dando, simultaneamente, provas de sua incompreensão. A 24 de outubro de 1492, por exemplo, escreve: ‘Pelo que ouvi dos índios, (a ilha de Cuba) é bastante extensa, de grande comércio, e que havia ouro e especiarias e grandes naus e mercadores’. Mas, duas linhas abaixo, escreve: ‘não compreendo a linguagem deles’ (p. 31).
Continuando com Todorov, este relata:
“A única comunicação realmente eficaz que Colombo estabelece com os indígenas baseia-se em sua ciência das estrelas: é quando, numa solenidade, se aproveita do fato de conhecer a data de um eclipse iminente da Lua; encalhado na costa jamaicana há oito meses, não consegue mais convencer os índios a trazer mantimentos gratuitamente; então, ameaça roubar-lhes a Lua, e na noite de 29 de fevereiro de 1504 começa a cumprir a ameaça, diante dos olhos assustados dos caciques... O sucesso é imediato” (p. 20).
A incompreensão e falta da sensibilidade foi apenas uma das muitas e cruéis consequências da conquista da América. Em sua cegueira cultural e visão extremamente eurocêntrica do mundo, os colonizadores da América, guiados inicialmente por Colombo, Cortez, Cabral, entre tantos outros, unicamente procuravam dali extirpar o que tanto esforço fizeram para encontrar: as riquezas minerais, ouro e prata. Nesse processo, procuravam e enxergavam unicamente “coisas” e foi como “coisas” que viram e trataram as culturas que aqui estavam.

E o diálogo com o mundo se faz cada vez mais necessário
Quanto maior o contato entre culturas distintas, as diferenças surgem e com elas, os conflitos. Aceitar o “outro” prontamente, desprovidos de preconceitos é uma atitude que permanece inalcançável, quase a mesma com que Colombo encontrou os povos da América no século XV.  A globalização moderna, mais de que colocar em contato o mundo em rede, fez aflorar diferenças, escancarou aos olhos do mundo a gigantesca forma excludente que distingue hoje os países do sul e os do norte; expôs as feridas da desigualdade e mostra, em jornais diários internacionais, a saga dos que tentam escalar as muralhas quase intransponíveis entre a miséria e o paraíso. É essa a batalha diária de milhares de imigrantes que fogem de suas terras devastadas por guerras e fome em direção à terra prometida. Pessoas que enfrentarão, caso consigam transpor a linha de chegada que delimita a diferença entre vida e morte, um mundo de desafios, inclusive linguísticos. A globalização, no dizer de Milton Santos, mais do que a propalada papagaiada de coloca-la como uma fábula, sustentada por uma máquina ideológica que nos mostra as vantagens de uma aldeia global, é um processo perverso para a grande maioria da humanidade, que poderia ser diferente, mas provavelmente nunca o será.
O papel do tradutor, nesse mundo confuso e “líquido”, que se desfaz – liquefaz - e se refaz a todo momento, não é somente o de levar e trazer as palavras desconhecidas a quem não as conhecem. É também inserir-se nessa Babel que, mais do que falar literalmente várias línguas, tem visões de mundo e realidades completamente diferentes, muitas vezes opostas e divergentes. O tradutor deve colocar-se diante desse mundo globalizado de forma não só a traduzi-lo, como também interpretá-lo.
Pois bem, sem a tarefa dos tradutores não somente não teríamos condições de comercializar, como também de conhecer as culturas dos “outros”, dos que pensam, falam, escrevem, diferente de nós. Todo um universo de palavras, poesias, romances, discursos, teatro, cinema estariam a uma distância abismal não fosse o trabalho, muitas vezes anônimo, dos tradutores. Não leríamos Cem anos de solidão, os alemães não leriam Grande Sertão Veredas, os chineses não assistiriam Escrava Isaura, não teríamos diariamente a invasão dos blockbusters americanos na nossa TV, não encenaríamos Bertold Brecht, não adoraríamos a Nouvelle Vague do cinema francês, o mundo não conheceria Paulo Coelho! Claro, como em toda comunicação humana, há as coisas boas e as não tão boas assim. Mas o fato é que sem o trabalho solitário dos que trabalham nos bastidores o mundo seriam ainda uma Babel incompreensível.


Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
CORTEZ, Hernan. A conquista do México. Porto Alegre: L&PM, 2011.
D’Aguir, Rosa Freire. Memórias de tradutora. Entrevista a Marlova Assef e Dorothtée Bruchard. Florianópolis: Escritório do Livro, 2004.
ECO, Umberto. Quase a mesma coisa. Experiências de tradução. Rio de Janeiro: Record, 2007.
GOROVITZ, Sabine. Os labirintos da tradução. Brasília: UNB, 2006.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2008.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1991.


Trindade, E. et al. (orgs). Curso de Direito. Leituras Essenciais. Campinas: Alínea, 2015.

Foi Lançado esse mês pela editora Alínea o livro Curso de Direito - Leituras essenciais, organizado por Edi Aparecido Trindade, Oscar Mellin Filho e Thiago Aparecido Trindade. Nele consta um capítulo escrito por mim, em parceria com Jair Aniceto de Souza intitulado O Tambor e a Toga: os tribunais Gaccaca de Ruanda. Nele apresentamos uma análise preliminar da importância que esse sistema comunitário adquiriu na política de reconciliação nacional, tanto no que concerne à justiça quanto em relação à sua função de ritual coletivo de partilha de emoções e reconciliação na sociedade ruandesa pós-genocídio.


sexta-feira, 3 de julho de 2015

Exposição ‘TROTAMUNDOS ou mirando minhas desconhecidas cidades’ reúne fotografias de Giancarlo Giannelli


GiannelliFoto_ExpoMACC15O Museu de Arte Contemporânea de Campinas “José Pancetti” (MACC), receberá a partir desta quarta-feira, 3, a exposição “TROTAMUNDOS ou mirando minhas desconhecidas cidades”, com trabalhos do fotógrafo ítalo-brasileiro Giancarlo Giannelli, radicado em Campinas.
A exposição, selecionada pelo edital de agendamento para exposições temporárias no museu, terá vernissage nesta quarta-feira, às 19h, e poderá ser vista pelo público até o dia 2 de agosto.
São 20 fotografias de diversas cidades brasileiras e estrangeiras que buscam instigar o observador aos fascínios das ruas, de suas personagens e edificações. A exposição “TROTAMUNDOS” proporciona ao espectador um passeio sensorial pelas paisagens e cenas, despertando um olhar analítico e crítico sobre o seu próprio espaço e vivência.
“É a oportunidade de o artista compartilhar com o público sua forma de olhar, conhecer e buscar lugares onde o “tapete vermelho” não chega e que refletem o dia a dia de uma cidade e, para os moradores da cidade é o momento de ser incentivado a abrir o olhar e descobrir seu espaço quotidiano”, explica Giannelli.
“As cidades se oferecem de várias maneiras ao olhar do viajante, desencadeando diferentes sentimentos: da torpor à perplexidade, do encantamento à recusa, e a medida que ganha as ruas, as paisagens, as pichações, os cinzas e os verdes, o espectador vai passeando pelo novo e pelo velho, pelo cimento e pelo aço, pelo caos e pela construção, pela penúria e pela ostentação. Tudo isso é a cidade do trotamundo”, completa o fotógrafo.
A entrada é gratuita. (Carta Campinas com informações de divulgação)
Exposição “TROTAMUNDOS ou mirando minhas desconhecidas cidades”
Museu de Arte Contemporânea De Campinas “José Pancetti”
3 de julho a 2 de agosto de 2015
Rua Benjamin Constant, 1633 – Centro
Abertura dia 3 de julho às 19 horas
Terça-feira à Sexta-feira – das 9h às 17h
Sábado – 9h às 16h
Domingos e Feriados – 9h às 13h
O meu pé de laranja lima

            No dia 24 de março de 1974, ganhei oficialmente meu primeiro livro de literatura infanto-juvenil. Até então a biblioteca da nossa casa destinada às crianças era composta de coleções de livros de Andersen e irmãos Grimm, a coleção O mundo da criança e outros tantos livros de contos de fadas e fantasia. Lia-se muito naquela casa e sempre tinha gibis para mim e meu irmão. A televisão era restrita a determinados horários, o quintal da chácara onde morávamos era imenso e cheio de atrativos, portanto o horário da pausa para ler era muito grande. Na época em que ganhei O meu pé de laranja lima, do José Mauro de Vasconcelos, lia escondido revistas de fotonovela das minhas tias e algumas revistas femininas da época, pois meus pais não me deixavam chegar perto delas. Também lia escondido alguns livrinhos de bolso muito populares naquele tempo, os faroestes, da série Stefania, mas meus favoritos eram os de espionagem, escritos por Lou Carrigan: Brigite Monfort, a espiã poderosa de cabelos negros e olhos azuis, que viajava o mundo inteiro, falava vários idiomas, lutava artes marciais, se metia em várias enrascadas e saía ilesa de todas elas. Tinha uma legião de ajudantes espiões espalhados pelo planeta, aos quais chamava de “Johnny” e namorava o mais esperto e brilhante espião de todos os tempos: o Número Um. 
            Nesse ano de 1974 ganhei outro livro que até hoje adoro: Seleções, do Malba Tahan.

            Algum tempo depois (03/08/1977) do O Meu pé de laranja lima, ganhei da minha tia Isa meu primeiro livro de poesia: Eu e Você, do Paul Géraldy e daí minha biblioteca foi crescendo e ainda tenho todos os meus livros ganhos desde a infância, sempre com a data em que foram recebidos. Por onde quer que eu vá, a cada mudança, são cuidadosamente embalados e na chegada à casa nova ganham novo espaço, e depois de limpos, voltam a fazer parte da minha vida. Uma frase dita pelo personagem Zezé, do O Meu pé de laranja lima, me vem à cabeça nessas ocasiões de mudança - e já foram muitas: “Casa nova. Vida nova e esperança simples, simples esperanças”. E lá vamos nós, eu e meus livros, para um novo lar.          

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Os artesãos das palavras

            Os contadores de histórias são personagens conhecidos hoje. São diversos os eventos que chamam esses personagens para se apresentam principalmente para contar histórias para crianças nas mais variadas situações, desde festas de aniversários e encontros em praças públicas a eventos promovidos por livrarias.
            O que muita gente não sabe é que o contador de história tem sua origem muito tempo atrás e em lugares muito distantes de nós.
            Recentemente um grupo de alunos do curso de jornalismo decidiu realizar um vídeo documentário sobre uma entidade denominada Griots que, a exemplo de grupos que percorrem a ala infantil de hospitais para levantar a moral de crianças internadas, ao invés de se fantasiarem como os já conhecidos Hospitalhaços, os Griots do documentário contam histórias para as crianças. Não por acaso, escolheram o nome de Griot para o grupo. Perguntados durante a apresentação se sabiam a origem do nome griot (na grafia francesa do termo), os alunos disseram que não. Pois bem, esse grupo de contadores de história se denominou Griot porque muito provavelmente conhecem a bonita e importante história dos griots africanos. Assim, pessoal, é importante, sim, saber a origem do nome do grupo sobre o qual farão o documentário. Mesmo porque, se “querem vender o seu peixe”, quanto mais informação sobre ele fornecerem, mais poderão pedir por ele, certo? E conhecimento não ocupa espaço.
            Então vamos lá:
            De acordo com Ahmadou Kourouma, do livro Homens da África[1], o

“griô é uma instituição da antiga civilização mandinga ou do Mali e pertence a uma casta socialmente inferior aos nobres e mostra respeito por eles em todas as ocasiões. Ele vive da generosidade dos nobres e só pode se casar com uma mulher da própria casta. (...) No Antigo Reino Mandinga, cada príncipe tinha um griô e era seu protetor. O griô acompanhava o príncipe em suas caminhadas e cuidava do protocolo. Hoje em dia esses artesãos das palavras não são designados a ninguém. São livres, públicos e ambulantes.
Quais são as funções do griô?
Nas reuniões públicas, o griô apresenta seu protetor e declama sua genealogia. Ele lhe propõe louvores. Quem não tem um griô particular e participa de uma dessas reuniões é louvado por um griô público. O homem da palavra serve de porta-voz nas assembleias e de conciliador nas controvérsias. Intervém como mediador entre indivíduos e famílias. Sabe tratar de todo tipo de procedimento, especialmente dos pedidos de casamento. E serve de arauto, anunciando as novidades de interesse geral para a população.
O griô é poeta e músico. Toca xilofione e kora. (...)
O griô conhece e ensina a história dos mandingas, com destaque para Sundjata, o imperador que unificou as terras desse povo. O griô guarda também a memória das genealogias dos clãs, a qual declama e glorifica durante as reuniões públicas” (pp. 10-16).


            Na chamada “África profunda”, nas sociedades negro-africanas que não adotam a escrita e têm na oralidade a sua principal fonte de transmissão do saber, a figura dos anciãos como guardadores da memória coletiva é imprescindível para a manutenção da história dos povos dos quais fazem parte. São pessoas idosas que pela idade têm o respeito dos outros como aqueles que têm a experiência e a sabedoria da vivência de muitos fatos. São chamados para resolverem problemas, questões de famílias e da aldeia, fazem discursos e resolvem situações que necessitam de algum tipo de intervenção, julgamento e punição aos considerados culpados. Normalmente reúnem-se sob a árvore da sabedoria (árvore da palavra, árvore da vida) junto às pessoas da aldeia durante eventos importantes. São os guardiões da palavra e da memória através da palavra. E a palavra, para esses povos, é algo sagrado e que não deve ser proferida em vão. Assim, pensar antes de falar e, sobretudo, refletir sobre as palavras, é algo extremamente importante para eles. A “metralhadora verborrágica”, tão comum na nossa sociedade, que dá atenção àqueles que falam muito e falam rápido, sem, no entanto falarem não importa o quê com a intenção que não outra senão a de chamarem a atenção para si mesmos, não tem vez nessa sociedade, que preza a sabedoria das palavras proferidas com intenções específicas. Algumas sociedades, como a ruandesa, os sábios anciãos contavam a história de seu povo remontando há séculos atrás, sabendo dizer toda a genealogia dos príncipes e reis que antecederam os atuais de seu povo.
            Ao conhecer um pouco mais sobre a história desse personagem tão importante, agora vocês entendem o porquê da escolha do grupo pesquisado sobre esse nome, e, portanto, sobre a intenção dele em se autodenominar Griot. Nada é por acaso, não é? Então, futuros jornalistas, nada de ficar na superfície, certo? Curiosidade faz parte da profissão de vocês!
Bom trabalho!



[1] Edições SM, 2009.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Estudos sobre África

             Terminou nessa semana o XXV Curso de Difusão Cultural Introdução aos Estudos de África, promovido pelo  Centro de Estudos Africanos - CEA/USP. Foram 42h/a, distribuídas em catorze aulas ministradas todas as segundas-feiras, das 19:00 às 22:00h, do dia 02 de março a 15 de junho de 2015.

            Mais do que aulas, foram palestras instigantes e interessantes, ministradas por especialistas em suas áreas de pesquisa, que geraram debates, curiosidades e interesses. As aulas tiveram como foco A África na geografia escolar (Prof. Dr. Rosenberg Ferracini), Línguas africanas (Profa. Dra. Margarida Petter); África Negra (Prof. Dr. Fábio Leite); Sociedades subsaarianas (Prof. Dra. Maria Cristina Wissenbach); Arte e sociedades africanas (Prof. Dra. Dilma de Melo Silva); Instituições Políticas Africanas (Prof. Dr. Kabengele Munanga); Visões da África (Prof. Dra. Marina Mello e Souza); Literatura e Sociedades Africanas (Profa. Dra. Rita Chaves); A África Oriental em Discussão (Prof. Dr. Nazir Ahmed Can); Situação colonial e as lutas de libertação (Profa. Dra Débora Leite David); Evento Comemorativo ao Dia da África (Profa. Dra. Tânia Macedo; Prof. Dr. Januel Gonçalves e Prof. Dr. José Luiz de Oliveira Cabaço); O islamismo na África (Prof. Dr. Paulo Daniel E. Farah); Olhando a África através das narrativas de língua inglesa (Profa. Dra. Mariana Bolfarine); África Contemporânea (Prof Dr Leila Leite Hernandez).  

            Além do rico material enviado semanalmente pelos professores, das anotações de sala de aula, das indicações bibliográficas e fílmicas, o curso abriu caminho para aqueles que têm, como eu, interesse em aprofundar pesquisas já iniciadas sobre determinados aspectos com foco no continente africano.
            Foi ótimo o convívio com colegas e professores, a quem aproveito para agradecer o estímulo ao ensino e à pesquisa, especialmente à diretora do CEA, professora Margarida Petter, à Lourdes, pelo apoio logístico imprescindível.
            À minha amiga Vivien Morgato, por ter difundido o curso e me indicado para fazê-lo.
            O aproveitamento do curso durante esse semestre também foi possível graças às ações de algumas pessoas, que contribuíram direta ou indiretamente para que eu tivesse tempo (tive mais tempo no trabalho) e condições financeiras (meu marido Henrique me ofertou o curso, bem como todos os meus deslocamentos para São Paulo) para usufruir desse legado intelectual.
            


 Professor Kabengele Munanga no dia de sua aula
Lourdes, eu e professora Margarida Petter
Aguardando a palestra do Dia da África



            Devo agradecer também ao meu amigo e parceiro intelectual Jair Aniceto, que me presenteou com alguns livros fantásticos, como:
História Geral da África; Pele negra, máscaras brancas (Frantz Fanon); Livro fotográfico do malinês Seydou Keita;
Meu querido ex aluno do curso de jornalismo Jaime Filho me ofertou a coleção História Geral da África; O negro no mundo dos brancos (Florestan Fernandes);  África e Brasil Africano (Marina de Mello e Souza); Homens da África (Ahmadou Kourouma); A África na sala de aula (Leila leite Hernandez).
Do professor Janoel Gonçalves adquiri África no mundo contemporâneo: estruturas e relações e Relato de guerra extrema.
Minha biblioteca africana está crescendo! Obrigada a vocês!


quinta-feira, 11 de junho de 2015

v. 3, n. 2 (2010)

Desafios das identidades sociais

A diversidade cultural abriga conceituações amplas sobre as principais angústias que geram pontos de conflito na sociedade contemporânea. Neste caso, como pensar na aplicação do tema diversidade cultural relacionado às identidades sociais, cujos desafios encontram-se na resolução e na aceitação das várias identidades do outro.

Sumário

Artigos

Dennis de Oliveira

 

Kátia Maria Roberto de Oliveira Kodama

 

Andréia Terzariol Couto

 

Silas Nogueira





ISSN: 1519-6895; ISSN Eletrônico: 2236-3467

Licença Creative Commons 2007 - 2015 - Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação 
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Os artigos estão disponíveis em pdf no site da revista:
http://www.revistas.usp.br/extraprensa/issue/view


Para a banca de TCC de Letras O universo feminino de Clarice Lispector na obra Laços de família[1], uma análise do conto Amor


A obra de Clarice Lispector, de tão complexa, já deu origem a inúmeras dissertações de mestrado e teses de doutorado. O universo feminino retratado por ela vai além do lugar comum lido nas linhas e entrelinhas de seus romances e contos. Compreender a complexidade desse enredado universo significa mergulhar nas profundezas do mundo simbólico criado por ela para falar de amor, desejo, solidão, tristeza, frustração, prazer. Ousar fazer esse mergulho o mais profundo possível talvez seja a chave para a compreensão inicial dessa fabulosa escritora.

Análise do conto Amor, de Clarice Lispector
                                               - Andréia T. Couto

A análise a seguir refere-se ao conto Amor, de Clarice Lispector. Esse conto admite várias leituras e análises e a que segue privilegia uma viagem ao interior da psicologia feminina, representada aqui pela personagem Ana.
Em um primeiro momento, após uma leitura desavisada, poderíamos imaginar Ana como a representação do cotidiano feminino, seu universo reduzido ao vaivém da rotina que chega a exasperação. Ana parece, em algum momento, se dar conta dessa rotina sufocante, mas, como quem varre a sujeira para debaixo do tapete, ela empurra a reflexão para adiante.
Uma leitura mais apurada conduz, através da análise estilística, das figuras utilizadas por Clarice, para uma inquietação mais profunda: Ana não é somente uma dona-de-casa massacrada – embora às vezes somos levados a acreditar que ela não percebe – pela rotina “feliz” do seu casamento.
A narrativa nos conduz para uma espécie de crescendo: tem início como se conduzisse o leitor por uma via já esperada, a personagem “certinha” por fim chega, através de uma ruptura, a consciência de que sua vida a oprime. Mas a opressão não é só pela rotina. Há algo mais por trás da inquietação de Ana. O clímax é atingido no Jardim Botânico, e, já em casa, ela continua a ter as sensações experimentadas no jardim.
A personagem Ana nos é apresentada como uma mulher comum, que vive a rotina de seu cotidiano sem sobressaltos, mas também sem reflexão. Talvez, porque em um momento, ela diz: “o que chamara de crise viera depois”. Isso pode ser um indício de que algo já a incomodava, mas não sabia o que era, ou não sabia – ou não ousava – nomear.
Ana vive na ordem do seu mundo, organizando-o, limpando-o não para si, mas para a sua família. A sua tarefa que nunca tem fim, e a sua punição - “De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos”. Mas aceita, não reclama, pois esse é o seu destino, destino de mulher “por caminhos tortos viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado”. E nada mais prosaico, normal, do que uma família “normal” – “O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros”. Verdadeiros, normais. Como parecia a ela viver sem felicidade, felicidade que não se encontra na normalidade. A família a qual pertencia era uma família, normal,  que cabia perfeitamente na invisibilidade na qual viviam. Não enxergar e não ter problemas, e não refletir sobre os problemas. Ana não vê as pessoas que gravitam ao seu redor porque não quer vê-las, não quer enxergar, refletir sobre suas inquietações. Mas é justamente o cego que vem lhe abrir os olhos. Ana não enxergava o que não queria ver. A vida de adulto que escolhe e vive a submerge para longe da realidade. Quando termina os seus afazeres, quando está tudo apaziguado, se sente vazia, não necessitada. No lar impecável, nessa hora, sua presença se junta à composição dos objetos, na sua ordem, na sua inutilidade: “Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela”.
O fim da tarde traz o movimento novamente, a necessidade da sua presença na organização de tudo. “Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração”. Também vibra o bonde nos trilhos, ainda nesse ponto a vibração é tranquila e o bonde segue nos “trilhos”, assim como sua vida, não descarrila, segue tranqüila sempre pelos mesmos caminhos, pois o que está nos trilhos, está nos eixos, correto, linear. No entanto, em certo momento, o bonde vacila, e segue então para ruas mais largas, sintomaticamente ‘ampliando’ seu caminho  - “O bonde vacilava nos trilhos entrava em ruas largas”. Abre-se o horizonte, as ruas se alargam, algo se prenuncia, a viagem para dentro de si mesma toma agora um sentido mais específico e podemos começar a perceber o que comove Ana – “Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. As figuras utilizadas pela autora, a partir daqui, começam a ganhar uma conotação mais específica.
Assim como o bonde, Ana vacila ao se dar conta do cego. As ruas se alargam diante do bonde como o horizonte de Ana se amplia ante a visão do cego.
O fim do horário instável traz também a resignação de sua vida morna – “Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher”. A mulher que aceita, a mulher resignada.
Ana, acostumada ao seu mundo normal, verdadeiro, de pessoas invisíveis, incomoda-se com o cego. E incomoda-se pelo fato de ele mascar chiclete. Ele, no incômodo de sua situação, aparenta tranquilidade através de um gesto banal de mascar chiclete (gesto banal X dificuldade) “O cego mascava chicles...Um homem cego mascava chicles”. Ele, apesar da sua dificuldade, aparentava tranquilidade, através desse gesto banal. O incomodo de Ana ante a visão do cego vem do fato de que ela é chamada a ver o que não quer, não quer pensar ou refletir sobre sua vida, seus problemas e a realidade que a cerca, ou sobre si mesma: “inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê”.
O incômodo cresce à medida que ela o observa, mas ela observa a si mesma. Deixa cair a sacola de compras e algo nela se quebra, os ovos. Nela também algo se rompe. Os ovos são os únicos objetos dentro da sacola a se quebrarem, por serem os mais frágeis. São eles que chamam a atenção dos passageiros do bonde, pela sujeira, pela viscosidade amarelada: “Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede”. Ana sente vergonha disso. “Ana deu um grito”; “Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgira-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível”.
Esse é o momento de ruptura e daqui para frente o clima do conto continua a subir, como na jornada do herói. Esse é o ponto da ruptura, algo se rompe – ou se ascende nela, ou ainda, se sente sacudida por uma sensação que lhe e despertada naquele momento. “A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara”. “O mal estava feito”.
Ana sufocava, “respirava pesadamente”.
Ana havia tentado em vão pensar sobre sua vida. Sufocava suas apreensões. O que chamava de crise - Ter que assumir o prazer. “O que chamara de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas sofrendo espantada”. A crise que viera, a busca pelo prazer, mas um mundo escuro, misterioso, mas que procurava com sofreguidão. “Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão”.
Ana entra no Jardim Botânico. A natureza é na literatura, acolhedora, protetora, inocente, bucólica. O jardim Botânico é cercado, fechado, protegido. Ana não vai para o mar, aberto, amplo, claro, mas para o Jardim Botânico, cercado, úmido, escuro. Um útero. Estaria protegida ali. “Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico”; “...o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si”. Dentro do jardim, Ana descobre um mundo de sensações que não desconhecia, mas que ganham agora um novo sentido, um novo prazer: “Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós”. As sensações vêm de cheiros, tato, ruídos. “De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada. Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais”.
Suave também são os pelos de um gato que chama sua atenção. Um poderoso gato, de pelos macios. A figura do gato, ambivalente, representa a figura masculina, grande, mas macio; tem medo dele, mas é suave; misterioso, mas belo, tem medo, por suas unhas afiadas, mas é atraída pelo mistério; gato representa traição, mas também sensualidade. As contradições da natureza estão na própria Ana e ao se dar conta disso, sente-se como que numa emboscada. “Fazia-se no jardim um trabalho secreto do qual ela começa a se aperceber”. O ‘trabalho’ da natureza, da vida, da fecundidade. Segue-se um trecho em que a exuberância da natureza é contraposta ao seu lado escatológico. Para reproduzir-se, a natureza deve imiscuir-se com a podridão do reino, com a decomposição, com a viscosidade, com o muco, com o visco. “Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros adormecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas” .
Ana observa em êxtase as atividades do jardim. As figuras observadas por ela nos conduzem a um outro jardim, o do pecado original: “No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. As luxuriosas aranhas grudadas nos troncos da árvore. As ações perpetradas no Jardim Éden-Botânico deixam de acabrunhá-la, já não a chocam: “A crueza do mundo era tranqüila”. Na sua descoberta – do prazer – a idéia que tinha antes do mundo se desfaz, desliga-se da culpa. “O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos” .
A seguir as referências seguem no mesmo caminho. A repressão sexual de Ana, estabelecida através de uma resistência, fortalecida pela repressão no início, acaba com a entrega no Jardim Botânico. A ‘aceitação’ de Ana, a sua vida ao seu cotidiano, e a aceitação da sua condição de repressão, de não prazer. O conservadorismo, que ainda guarda, é representado pelas figuras de nojo, asco, mas que começa a se desfazer a partir do momento em que associa o nojo ou asco com entrega, prazer, fascínio, volúpia, apetite. “Era um mundo de se comer com os dentes”, volúpia e promiscuidade de dálias e tulipas, de “troncos percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse a entrega – era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante. A repressão, o nojo, precedia a sua entrega ao prazer. Ana viveria essa contradição.
“O mundo era tão rico que apodrecia”: a exuberância da natureza mostra sua face de fartura. Como o ciclo da vida, quanto mais flores, mais frutos, mais folhas, mais fértil.
O Jardim do Éden, o mundo do pecado, o mundo de sexo que leva ao prazer e à culpa. Ana chega assim à imagem do Inferno. “O jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno”. A descoberta do prazer faz temer porque associa o prazer ao pecado. “Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo. “Ela amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo”. Segue-se uma série de associações desse tipo; o filho, que nasceu a partir de um ato do qual tinha nojo. A seguir fala das ostras, que tem também uma associação com o sexo feminino, como em espanhol a palavra concha popularmente se refere-se ao órgão genital feminino: “Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a” . O que seria essa aproximação da verdade da qual tinha asco? Do seu marido verdadeiro.
Ruptura feita, clímax atingido, o conto “desce” a ladeira no seu movimento de volta ao ponto de estabilidade. Após as “descobertas”, reflexões ou aceitações, ou experiências, Ana volta a si e ao cotidiano, mas não sem ser tocada agora pelas “coisas da natureza”, pois não tinha mais volta. Não podia mais fugir de si mesma e de suas descobertas. “Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava”.
A água passou das medidas, transbordou, as sensações represadas, o desejo reprimido  escapam, jorram para fora. Ana confronta-se com seu próprio prazer: “Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? E que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver”. Assumir o prazer: “Um cego me levou ao pior de mim mesma”. De volta a sua cozinha, Ana agarra-se aos objetos do seu cotidiano, e as ações da natureza continuam ao seu redor com seus atos lúbricos “havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na sua cozinha”. Ana repetia em casa suas experiências no Jardim Botânico.
De volta à normalidade da família e das pessoas invisíveis, Ana se reúne ao redor da mesa com todos felizes em não enxergar as anormalidades, cujo único tremor é o do avião que passa estremecendo talvez as vidraças da janela. O marido que a conduz, à noite, e o marido verdadeiro, na sua tranqüilidade morna. Estaria ele pronto para aceitar as transformações de Ana? 






[1] A. Ferragut, I.M. Paviotti, L.A. Oliveira, M.B. Santos