Tradução: um diálogo com o mundo
“Decifra-me ou te
devoro”. Esfinge de Tebas
Tradução
“O que quer dizer traduzir? A primeira e consoladora reposta
gostaria de ser: dizer a mesma coisa em qualquer outra língua. Só que, em primeiro
lugar, temos muitos problemas em estabelecer o que significa “dizer a mesma coisa” e não sabemos bem o que
isso significa por causa daquelas operações que chamamos de paráfrase,
definição, explicação, reformulação, para não falar das supostas substituições
sinonímicas Em segundo lugar, porque, diante de um texto a ser traduzido, não
sabemos também o que é a coisa. E,
enfim, em certos casos é duvidoso até mesmo o que quer dizer dizer”.
Umberto Eco, Quase a
mesma coisa, p. 9, 2007.
Torre de Babel
A tradução na sociedade
contemporânea
Vivemos em plena era da
globalização, em que a comunicação planetária é a essência do nosso cotidiano.
Diariamente recebemos e enviamos mensagens de toda natureza para uma massa
gigantesca de pessoas, situação inimaginável cinquenta anos atrás. A todo
instante é possível acessar dados oriundos dos mais variáveis conteúdos, saber
pormenores deles, conhecer fatos jornalísticos dos países mais distantes, ler
os principais jornais do mundo pela internet, solidarizar-se com vítimas de catástrofes
ocorridas do outro lado do planeta, observar o comportamento animal nas regiões
mais distantes, assistir guerras, conflitos, deslocamentos de refugiados por
todo o globo, conversar com o colega australiano, do outro lado do mundo, pela
tela do computador ou do celular. Tudo
isso a um clique. Sob esse ponto de vista, podemos dizer que o nosso diálogo
com o restante do mundo se dá basicamente através da tradução. É através dos
olhos de outras pessoas que deciframos aqueles que são diferentes de nós. O
papel do tradutor, mais do que passar um assunto de um idioma para outro, é o
de nos fazer adentrar em outras culturas, outros costumes, outras formas de
pensar e ver o mundo. Mais que traduzir, o profissional da tradução ilumina um
mundo que, sem ele, seria simplesmente trevas.
Tudo isso é possível, claro,
graças ao incrível desenvolvimento tecnológico iniciado principalmente a partir
de meados do século XX, mas acelerado de forma incondicional nas últimas três
décadas. Sim, o desenvolvimento tecnológico é o principal componente que nos
vem à mente quando falamos sobre as facilidades de comunicação e transporte de
informação no século XXI. No entanto, um elemento essencial nessa situação
raramente é lembrado: de nada adiantaria toda a velocidade e facilidade de
acesso à informação se vivêssemos ainda em uma situação da “torre de Babel”:
seriam geradas informações que não seriam compreendidas uns pelos outros.
Portanto, chegamos ao ponto mais importante do desenvolvimento tecnológico: o
componente humano, a comunicação humana. De que adiantariam todas as facilidades de
comunicação se não pudéssemos compreender a mensagem?
Assim, para que serviria eu saber
que os jornais Le Monde, El País, Deutsch
Zeitung, The New York Tmes, os telejornais BBC, CBN, TV5 Monde, Deutsch
Welle estão acessíveis se não compreendesse uma só palavra de seus jornalistas?
Sim, vivemos em plena era da tecnologia e da comunicação, e por isso mesmo,
nunca se fez tão necessário o estudo de línguas estrangeiras. Nesse momento, o
profissional da tradução é peça importante e relevante no mundo pós-moderno.
Qualquer profissional que queira ser bem-sucedido em sua área de atuação
necessita dominar um ou mais idiomas estrangeiros.
Claro, essa situação sempre se
impôs ao ser humano, mesmo se deslocando pelo mundo restrito conhecido nos
primórdios dos tempos, ele já sentia a necessidade de comunicar-se com outros
povos, outras culturas, fosse para comerciar, para viajar ou mesmo por
curiosidade. Há relatos de viajantes desde a Grécia antiga sobre as questões da
tradução e ainda de viajantes que se embrenhavam no mundo africano desde tempos
imemoriais e tentaram se comunicar com o desconhecido. O suaíli é um exemplo de
língua franca utilizada ainda hoje por todo o continente africano, oriundo da
necessidade de comunicação que tinham as ancestrais caravanas de comércio que
se moviam do Norte pelas costas ocidental e oriental da África.
Os modelos de comunicação
Partindo da premissa de que a
tradução é um diálogo com o mundo, ela insere-se como um elemento fundamental
no processo comunicativo, havendo a necessidade de representa-la não somente
como um fim em si mesma, mas como um esquema comunicativo em que a interação
entre os componentes desse processo esteja presente o tempo. Caso isso não
ocorra, há o risco de haver “ruídos” nesse procedimento que podem comprometer o
resultado final.
Desde a antiguidade, houve
propostas de representar modelos de comunicação que dessem >perdurou por
mais tempo através da história.
O modelo básico de comunicação
foi proposto por Aristóteles (300
a.C.), assumindo que a comunicação se dava da seguinte forma que, como se pode
ver, pressupõe apenas um sentido:
Emissor --> Mensagem
--> Receptor
O modelo acima possui caráter
linear e enfatiza a transmissão da mensagem.
A comunicação é o princípio
básico a se estabelecer em um processo de tradução. Se pensarmos somente no
emissor, traduzindo a obra em questão sem levar em consideração os aspectos
mais profundos que interagem nesse processo, corre-se o risco de o receptor
receber uma mensagem comprometida no seu pleno significado.
Estudiosos da comunicação, como Shannon e Weaver (1949), apresentaram
um modelo básico que também procurava ilustrar o processo, inserindo então
novos elementos na cadeia comunicativa. Tiveram como base a teoria matemática
da informação, originada nas pesquisas de engenharia das telecomunicações. Seu
princípio é o seguinte:
“Existe uma fonte ou nascente da
informação a partir da qual é emitido um sinal, através de um aparelho
transmissor; esse sinal viaja através de um canal, ao longo do qual pode ser
perturbado por um ruído. Quando sai do canal, o sinal é captado por um receptor
que o converte em mensagem que, como tal, é compreendida pelo destinatário”
(Wolf, 1987, p. 114).
Assim, esse modelo linear básico
pode ser visto da seguinte forma:
Fonte/aparelho
transmissor –> sinal ~~~~~ -->
Receptor --> Destinatário
A crítica que se faz a esse
modelo é que o processo de comunicação consiste em reproduzir uma situação dada, cabendo ao receptor somente
recebê-la. Além disso, pressupõe a ideia de um remetente ativo e outro –
receptor – passivo, levando assim, a uma impressão de manipulação do
destinatário. Somente o ruído é que poderia atrapalhar esse processo, nada
mais.
Qualquer ruído nesse caminho poderá
comprometer o sucesso da comunicação. Acontece que esse processo não é tão
simples assim, ao contrário, é complexo, pois nele entram as variantes
culturais, linguísticas, históricas....
O teórico da Comunicação Lasswell (1949) criou um modelo de
comunicação verbal, indicando que o processo de comunicação humana se dá de
forma também simples e linear, de acordo com o gráfico abaixo:
Esse esquema básico pressupõe que
quem envia uma mensagem qualquer utiliza um determinado código, através de um
meio para ser recebido por uma determinada pessoa que o compreenderá.
Os teóricos Moles e Meyer-Eppler
trazem uma inovação ao apresentarem dois componentes importantes no processo
comunicativo: o repertório, tanto do emissor, como do receptor. Assim, em uma
tradução, fica agora mais clara a importância que têm certas situações, ao
traduzir uma obra: é essencial que o repertório de quem traduz seja o mais completo
possível, tanto na língua de saída como na de chegada, para que o seu receptor
possa receber, de forma ampla e completa, as informações traduzidas. Para isso,
seu repertório, tanto de conhecimento linguístico como de conhecimento de mundo
são essenciais.
Quem?
|
Diz o que?
|
Em que canal?
|
Para quem?
|
Com que efeito?
|
Emissor/Comunicador
|
Mensagem
|
Canal
|
Receptor
|
Efeito
|
Esse esquema básico pressupõe que
quem envia uma mensagem qualquer utiliza um determinado código, através de um
meio para ser recebido por uma determinada pessoa que o compreenderá.
Os teóricos Moles e Meyer-Eppler
trazem uma inovação ao apresentarem dois componentes importantes no processo
comunicativo: o repertório, tanto do emissor, como do receptor. Assim, em uma
tradução, fica agora mais clara a importância que têm certas situações, ao
traduzir uma obra: é essencial que o repertório de quem traduz seja o mais completo
possível, tanto na língua de saída como na de chegada, para que o seu receptor
possa receber, de forma ampla e completa, as informações traduzidas. Para isso,
seu repertório, tanto de conhecimento linguístico como de conhecimento de mundo
são essenciais.
Modelo Linear Básico, de Moles (1958) e Meyer-Eppler (1959):
Emissor –> Sinal –> Receptor
Repertório do emissor Repertório do Receptor
Esse modelo deu origem a outros,
pois o processo de comunicação é bem mais complexo do que uma situação linear.
Para tentar chegar a um modelo
que conseguisse englobar todos os elementos possíveis no processo de
comunicação, surge o modelo influenciado pela cibernética (estudo dos
mecanismos de comunicação e de controle de máquinas e nos seres vivos) dos anos
1940, trazendo conceitos como feedback (realimentação, retorno, resposta),
levando em conta as interações entre os elementos no processo comunicativo,
realizando uma ampliação e uma crítica ao modelo de comunicação humana.
Modelo circular de Schramm (1945-55)
e Osgood (1954).
Os autores propõem uma visão interacionista,
com feedback e fluxo contínuo de informações, tendo o processo de comunicação
experiências comuns de ambos os lados:
Campo de experiência Campo
de experiência
Codificador --> --> Decodificador
Intérprete Intérprete
Mensagem <-- <-- Mensagem
Esse modelo pressupõe uma
interação através do feedback e fluxo contínuo de informação compartilhada.
Também foi passível de críticas, como à ideia de congruência de objetivos entre
emissor e receptor, embora tenha continuado como uma presença marcante. Em uma
situação de tradução, quanto mais amplo for os campos de experiência de ambas
as partes, mais rico será o aproveitamento final.
Quando se fala em tradução, a
primeira situação que nos vem à mente é a tradução literária, passando pela
tradução técnica e outros usos profissionais. No entanto, muitos se esquecem
que a tradução está no nosso cotidiano de forma mais abrangente, e mesmo não
sendo profissionais da área, recorremos a ela na nossa formação acadêmica e
profissional. Eu mesma sempre me vali dela para a condução da minha vida
profissional e acadêmica.
Idiomas estrangeiros sempre me
encantaram, e sempre quis ler meus autores favoritos no seu próprio idioma. Na
universidade, não temos muita saída: livros acadêmicos, muitos deles acabam
sendo lidos no original. Enquanto estava na Alemanha, chegava cedo na
biblioteca, separava o material que leria naquele dia e os dicionários, pois
sempre tinha sobre a mesa livros em inglês, francês, espanhol e alemão. O que
havia em português era praticamente zero.
Portanto meu contato com idiomas
estrangeiros veio primeiro por uma fonte de prazer, através da literatura, e
depois por uma questão de necessidade, quando ingressei na universidade.
E como leitora de produtos
traduzidos, pelo fato de conhecer os idiomas que leio traduzidos, a
sensibilidade crítica de reconhecer uma boa tradução é maior. Além disso, um
ponto que deve ser ressaltado é que a proximidade entre o seu fazer e a
tradução também é essencial.
Já imaginaram um livro de poesia ser traduzido
por quem não é poeta? Alguns grandes escritores foram tradutores de romances.
Na universidade, durante a graduação
de Letras, fui monitora de Literatura Brasileira e trabalhei com a obra do
poeta modernista Souzândrade, paralelamente à uma disciplina de tradução. Esse
poeta brasileiro viveu muitos anos nos Estados Unidos e sua obra é marcada por
traços de estrangeirismos, neologismos e aglutinações dos idiomas
português/inglês. E quem foram os grandes tradutores e estudiosos da obra de
Souzândrade, e responsáveis por sua divulgação e estudos acadêmicos de sua obra
no Brasil? Os irmãos Campos, Augusto e Haroldo, conhecidos poetas, semiólogos,
tradutores. Souzândrade foi um poeta marcadamente influenciado pela poesia de
Ezra Pound, poeta, músico e crítico que, juntamente com T. S. Eliot, participou
do movimento da poesia modernista norte-americana do início do século XX. Provavelmente um tradutor de Souzândrade
que não tivesse o conhecimento técnico aliado à sensibilidade poética, não
poderiam ter feito uma tradução tão interessante da obra desse poeta.
Os irmãos Campos são também
conhecidos por se abrigarem sob uma corrente da tradução que acredita, mais do
que na tradução técnica, fria, e no caso da tradução de poesia, da obediência
total à precisão métrica e de rima da poesia, no resguardo do seu sentido.
Porque a tradução de poesia, tarefa das mais difíceis, tem que abranger a
essência do significado, marcada pela amplidão concedida pela subversão do
significado exato das palavras, e ainda contemplar o esquema métrico, a
melodia, a rima, o ritmo do poema. Ao privilegiar um em detrimento do outro,
perde-se necessariamente uma das partes. E como lidar com isso, conseguir unir
as duas pontas? Segundo os irmãos Campos, recriando o poema. Naturalmente, há
controvérsias a esse respeito. Mas a tradução literária enfrenta esses dilemas,
e para quem envereda por esses caminhos, acaba se deparando com ele. Não basta
simplesmente conhecer a fundo os dois idiomas. Há a necessidade profunda também
de conhecer a obra do autor traduzido, seu universo, suas técnicas, o período
em que viveu, sua própria vida. Se é um autor ainda vivo, muitos tradutores
mantêm contato, conversam, trocam ideias. Imaginem a tradução da obra de
Guimarães Rosa, um dos autores brasileiros mais traduzidos para os mais
diversos idiomas. Se sua obra já traz para os leitores brasileiros uma miríade
de neologismos, falares típicos regionais, muitas vezes indecifráveis para um
leitor comum pouco afeito à leitura, imagine conseguir uma tradução “perfeita”
para uma língua muito diferente da nossa, com outras raízes, como o alemão, por
exemplo.
O tradutor sempre se confronta
com situações difíceis e inesperadas e tem que estar pronto para superá-las.
Essas situações passam por vários planos, desde expressões idiomáticas,
expressões típicas locais, palavras com duplo sentido, trocadilhos, ironias que
fazem sentido em uma língua, mas não em outra.... Como superá-los? Por isso que
nem sempre somente conhecer o idioma do qual se traduz é suficiente. Uma
bagagem cultural sólida é fundamental para buscar o sentido oculto onde menos
se espera. Por isso, as soluções de tradução muitas vezes são surpreendentes e
podem quase até superar o idioma de partida. Traduzir ipsis literis nem sempre pode dar certo, e ao “respeitar” demais o
idioma traduzido corre-se o risco de ter um resultado frio e engessado. Outro
fato a ser considerado é que as traduções, assim como o original, “envelhecem”.
Vejam, falo isso de forma muito entre aspas. Mais especificamente de obras que
carregam fortes traços e marcas linguísticas de sua época, como expressões,
gírias. A tradução, ao obedecer isso, em uma determinada época, também acaba
carregando nas expressões e gírias correspondentes. Por exemplo, um romance brasileiro
da década de 1960 poderia trazer várias gírias típicas e expressões daquela
época, como “brotinho”, “é uma brasa, mora”, ou da década de
1970, como “bicho”, o “véio” que a “galera” utiliza hoje em dia. Como traduzir isso? Obedecendo os
padrões da época ou “adequando” as gírias às atuais? Vale ainda confrontar
várias traduções feitas por diferentes tradutores sobre uma mesma obra,
verificar as soluções encontradas por cada um deles.
A título de exemplo, cito Clélia
Piza, sobre “Les travailleurs de l´ombre,
sobre o lançamento recente de uma nova tradução de Ulisses, de James Joyce:
A primeira
tradução é de 1948, feita por dois tradutores e revista por Valery Larbaud e
pelo próprio Joyce. A fama do autor, então limitada a pequenos círculos
intelectuais, tornou-se mundial, o número de especialistas de sua obra
progrediu geometricamente, o francês de agora já não é o da época da tradução e
esse conjunto de fatores resultou no novo projeto editorial que reuniu seis
tradutores. Um deles escreveu uma espécie de diário desse trabalho em conjunto,
que prova quanta exigência, quanto saber, quanta paciência esses travailleurs de l´ombre, trabalhadores
da sombra, precisam ter para levar a cabo uma tarefa que parece – mas só parece
– não ser das mais árduas.
Experiências noutras línguas
Meu contato com um idioma
estrangeiro começou quando eu tinha treze anos e meus pais me matricularam em
uma escola de inglês, o CCAA. A partir de então, passei pelo Yazigi e Cultura
Inglesa, até ir para a universidade cursar Letras, influenciada pelo gosto que
tinha pelo idioma inglês. Durante o colégio, tive aulas de francês e inglês na
escola pública em que estudava, em Araçatuba.
Quando criança, havia muita
revista em espanhol em casa, pois meu pai, aviador, colecionava edições sobre
aviação que na época chegam somente em espanhol. Curiosa, ia lendo, tentando
daqui e dali, consultando dicionários e quando percebia, lia a revista inteira.
Antes de entrar na faculdade,
comecei a estudar francês por conta própria, com base do que aprendia na
escola, a partir de um material que meu pai tinha em casa, quando havia
estudado esse idioma no colégio. Paralelamente ao curso de inglês, que
continuava fazendo.
Iniciei o curso de bacharelado em
tradução em 1982 na Universidade Federal de Ouro Preto, pois pensava em
trabalhar na área.
Na universidade fiz curso de
francês e esse idioma passou também a me interessar de uma maneira mais
profunda. Ainda durante o curso de Letras, iniciei o curso de italiano,
proposto como curso de extensão, na universidade. Mais tarde, já no mestrado,
mudei-me para a Alemanha, desembarcando no país com o idioma no nível zero.
Comecei trocando aulas português/alemão com uma jornalista vizinha até iniciar
o curso formal na Wolkshochshule (gratuito,
mantido pela prefeitura de Braunschweig, onde residia), curso intensivo de
quatro horas diárias, cinco dias por semana. O curso, a vivência no país, os
novos amigos forçaram o desenvolvimento relativamente rápido do idioma. Durante
o tempo em que estive na Alemanha fiz o intermediário no Instituto Goethe, na
cidade de Freiburg, uma cortesia para cônjuges de bolsistas do governo alemão; aproveitei
o preparatório para o Toefl, que era
gratuito na universidade e afinei o espanhol, pois convivia com amigos de
língua espanhola da Espanha e de vários países da América Latina. Finalizei a
etapa do curso de alemão com o avançado oferecido pela universidade. Durante
dois anos, praticamente todos os dias, estudei gratuitamente o idioma alemão
nas cidades em que residi.
Voltando da Alemanha, fiz o curso
de francês no Instituto de Estudos da Linguagem, na Unicamp e me preparei, na
Aliança Francesa, para o certificado. Estava a caminho de fazer meu doutorado
na França, na Universidade Paris X. Na França, novo desafio, assistir aulas e
seminários em francês, discutir com o orientador, escrever relatórios... paralelamente,
o círculo foi aumentando, com amigos, colegas, professores. Se na Alemanha
convivia muito com a língua espanhola, juntamente com a alemã, na França o
convívio foi com a língua árabe, pois tinha muitos amigos do norte da África e
quando saíamos juntos, o idioma falado era o árabe. Quando viajei para o
Marrocos, foi uma família árabe quem me recebeu. Claro, eu não falava, nem entendia
nada, salvo algumas poucas palavras isoladas, mas a sonoridade do idioma,
totalmente novo para mim, foi um encanto. De volta ao Brasil, quis estudar mais
esse idioma, mas acabei desistindo.
Algum tempo depois, para dar
andamento a uma pesquisa, passei quatro meses na África Central, em Ruanda. Fui
tranquila em relação ao idioma, pois uma das línguas oficiais do país é o francês,
mas uma parcela da população fala também - ou somente - o inglês, inclusive seu
presidente e parte do seu staff. Linguisticamente, foi uma experiência
incrível. Na universidade, os alunos falam sua língua materna, o kirnyawanda, o
francês, língua oficial do ensino, o inglês, pois alguns professores são
estrangeiros, como canadenses não franco fônicos, suíços, americanos, alemães.
Portanto, o estudante que ingressar na universidade em Ruanda deve
necessariamente, dominar três línguas. Acontece que muitos deles falam também o
suaíli, língua franca falada por toda a África, além de alguns trazerem para
sua experiência universitária idiomas falados em suas pequenas vilas. Enfim, o
africano, forçado principalmente pelo processo colonizador, acabou tendo que
conviver com dois ou mais deles no seu cotidiano e o africano de cidades
grandes, universitário, fala de dois a três idiomas. Animada com mais uma
possibilidade, acabei estudando suaíli e de volta ao Brasil me matriculei em um
curso no IEL da Unicamp, que durou um ano. É um idioma bastante complexo e
domino gramaticalmente somente seus rudimentos, mas compreendo, a partir da
oralidade, várias situações contextuais.
Cristóvão Colombo e a descoberta
da América -
Um caso de desrespeito histórico
com a língua “do outro”
Assim, traduzir é trazer ou levar
o mundo do outro. Pode ser o mundo da poesia, da literatura, da informação
jornalística, do conhecimento científico, dos fatos da história, das viagens de
turismo. Para cada um, uma maneira diferente de operar a ferramenta, de
conduzi-la de forma a que o resultado final seja o melhor, o mais compreensível
possível. Para tanto, não basta somente dominar o idioma do outro, em termos
técnicos, mas principalmente, conhecer profundamente sua cultura, onde repousam
suas raízes linguísticas.
Trago aqui uma história exemplar
daquele que é considerado uma das grandes figuras da história, Cristóvão
Colombo. Tido por uns como um dos maiores heróis do passado, o Almirante
Colombo é o imponente navegador dos séculos XV e XVI.
Em sua obra A conquista da América, Todorov (1991) nos apresenta outra face de
Colombo, pouco conhecida pelo público em geral. Como legítimo representante europeu
do “mundo civilizado” de sua época, Colombo é fruto da Europa de seu tempo, de
suas crenças, do homem católico, temente a Deus e alucinado por ouro. E como
tal, trazia em si a contradição de uma época que se confrontava de um lado com
a inquisição enquanto que de outro inevitavelmente se deparava com transformações
históricas e científicas irreversíveis. Enfrentou a ira da igreja católica em
pleno momento da Inquisição tentando provar sua teoria de que a terra era
redonda e só não teve um fim trágico devido às suas boas relações com o clero.
Para conseguir financiamento para sua empreitada ao novo mundo, jurou aos reis
de Espanha que voltaria com os navios abarrotados de ouro; ao clero e aos reis,
tementes a Deus, que levaria a palavra de Deus onde quer que aportasse. Cumpriu
ambas as promessas.
Colombo, durante o longo tempo em
que passou de ilha em ilha no novo mundo, pouco interesse demonstrou pela
diversidade linguística que encontrava pelo caminho, tampouco com as diferentes
culturas com as quais se deparava. Em sua visão etnocêntrica, esses “outros” que
cruzavam o seu caminho eram vistos como “coisas”, nunca dignos de respeito ou
curiosidade de natureza cultural ou linguística. Prova disso são os escritos de
seus Diários, em que os indígenas são
mencionados ora como empecilho às suas empreitadas, ora como serviçais a postos
da coroa espanhola. Jamais como pessoas, dignos representantes e possuidores
legítimos das terras que, sem qualquer cerimônia, nomeava e tomava posse.
Ávido por tomar posse das terras
recém “descobertas” e para notificar seu feito aos reis da Espanha, tratava
logo de nominar aquilo que descobria, pouca importância dando se as terras em
que pisava já pertencessem a alguém, tampouco se já tinham algum nome:
“Toda a dimensão de
intersubjetividade, do valor recíproco das palavras (...) do caráter humano, e,
portanto, arbitrário, dos signos, lhe escapa”. (p. 28).
Todorov, em seu livro nos relata
episódios que, se não fossem tristes sob a perspectiva histórica, seriam
hilários do ponto de vista linguístico: sua primeira experiência no novo mundo
revela uma enorme população desconhecida, para a qual lê um enorme discurso,
avisando aos locais que aquela terra pertence, a partir daquele momento, à
coroa espanhola. Tudo isso diante da massa de indígenas que o ouvem, curiosos e
sem compreenderem uma só palavra, de que estavam sendo usurpados de suas
terras.
“O primeiro ato de Colombo em
contato com as terras recentemente descobertas (consequentemente, o primeiro
contato entre a Europa e o que será a América) é uma espécie de ato de
nominação de grande alcance: é uma declaração segundo a qual as terras passam a
fazer parte do reino da Espanha. Colombo desce à terra numa barca decorada com
o estandarte real, acompanhado por dois de seus capitães, e pelo escrivão real,
munido de seu tinteiro. Sob os olhares dos índios, provavelmente perplexos, e
sem se preocupar com eles, Colombo faz redigir um ato. “Ele lhes pediu que
dessem testemunho de que ele, diante de todos, tomava posse da dita ilha – como
de fato tomou – em nome do Rei e da Rainha, seus senhores...” (11.10.1492)
(Todorov, p. 28).
Em determinado episódio, tendo
aprendido o vocábulo indígena “cacique”,
“Preocupa-se menos em saber o que
significa na hierarquia, convencional e relativa, dos índios, do que em ver a
que palavra espanhola corresponde exatamente, como se fosse óbvio que os índios
estabelecem as mesmas distinções que os espanhóis; como se o uso espanhol não
fosse uma convenção entre tantas, e sim o estado natural das coisas” (p. 29).
A correspondência adequada entre
as palavras de línguas diferentes parece não causar nenhum embaraço ao
conquistador, uma vez que, para ele, o aspecto cultural não existe.
“Até então, o Almirante não
pudera compreender se esta palavra (cacique) significava rei ou governador.
Eles tinham também uma outra palavra para os grandes, que chamavam nitayno, mas ele não sabia se designava
um fidalgo, um governador ou um juiz” (Diário, 23.12.1492, apud Todorov, op.
Cit., p. 29).
“Não será nada surpreendente
notar a pouca atenção que Colombo dá às línguas estrangeiras. Sua reação
espontânea, nem sempre explícita, mas subjacente a seu comportamento, é que, no
fundo, a diversidade linguística não existe, já que a língua é natural. O que
se torna ainda mais surpreendente na medida em que o próprio Colombo é
poliglota, ao mesmo tempo desprovido de língua materna: pratica tão bem (ou tão
mal) o genovês, quanto o latim, o português e o espanhol; mas as certezas
ideológicas sempre souberam superar as contingências individuais” (p. 29).
“Colombo não reconhece a
diversidade das línguas, e, por isso, quando se vê diante de uma língua
estrangeira, só há dois comportamentos possíveis, e complementares: reconhecer
que é uma língua, e recusar-se a aceitar que seja diferente, ou então
reconhecer a diferença e recusar-se a admitir que seja uma língua... Os índios
que encontra logo no início, a 12 de outubro de 1492, provocam uma reação do
segundo tipo: ao vê-los, promete: ‘Se Deus assim o quiser, no momento da
partida levarei seis deles a Vossas Altezas, para que aprendam a falar’ (esses
termos chocaram tanto os vários tradutores franceses de Colombo que todos
corrigiram ‘para que aprendam nossa língua’). Mais tarde conseguiu admitir que
eles têm uma língua, mas não chega a conceber a diferença, e continua a escutar
palavras familiares em sua língua, e fala com eles como se devessem
compreendê-lo, e censura-os pela má pronúncia de palavras ou nomes que pensa
conhecer” (p. 30).
Ainda segundo Todorov, “o que choca
e surpreende é o fato de Colombo agir o tempo todo como se entendesse o que lhe
dizem, dando, simultaneamente, provas de sua incompreensão. A 24 de outubro de
1492, por exemplo, escreve: ‘Pelo que ouvi dos índios, (a ilha de Cuba) é
bastante extensa, de grande comércio, e que havia ouro e especiarias e grandes
naus e mercadores’. Mas, duas linhas abaixo, escreve: ‘não compreendo a
linguagem deles’ (p. 31).
Continuando com Todorov, este
relata:
“A única comunicação realmente
eficaz que Colombo estabelece com os indígenas baseia-se em sua ciência das
estrelas: é quando, numa solenidade, se aproveita do fato de conhecer a data de
um eclipse iminente da Lua; encalhado na costa jamaicana há oito meses, não
consegue mais convencer os índios a trazer mantimentos gratuitamente; então,
ameaça roubar-lhes a Lua, e na noite de 29 de fevereiro de 1504 começa a
cumprir a ameaça, diante dos olhos assustados dos caciques... O sucesso é
imediato” (p. 20).
A incompreensão e falta da
sensibilidade foi apenas uma das muitas e cruéis consequências da conquista da
América. Em sua cegueira cultural e visão extremamente eurocêntrica do mundo,
os colonizadores da América, guiados inicialmente por Colombo, Cortez, Cabral,
entre tantos outros, unicamente procuravam dali extirpar o que tanto esforço
fizeram para encontrar: as riquezas minerais, ouro e prata. Nesse processo,
procuravam e enxergavam unicamente “coisas” e foi como “coisas” que viram e
trataram as culturas que aqui estavam.
E o diálogo com o mundo se faz
cada vez mais necessário
Quanto maior o contato entre
culturas distintas, as diferenças surgem e com elas, os conflitos. Aceitar o
“outro” prontamente, desprovidos de preconceitos é uma atitude que permanece
inalcançável, quase a mesma com que Colombo encontrou os povos da América no
século XV. A globalização moderna, mais
de que colocar em contato o mundo em rede, fez aflorar diferenças, escancarou
aos olhos do mundo a gigantesca forma excludente que distingue hoje os países
do sul e os do norte; expôs as feridas da desigualdade e mostra, em jornais
diários internacionais, a saga dos que tentam escalar as muralhas quase
intransponíveis entre a miséria e o paraíso. É essa a batalha diária de
milhares de imigrantes que fogem de suas terras devastadas por guerras e fome
em direção à terra prometida. Pessoas que enfrentarão, caso consigam transpor a
linha de chegada que delimita a diferença entre vida e morte, um mundo de
desafios, inclusive linguísticos. A globalização, no dizer de Milton Santos,
mais do que a propalada papagaiada de coloca-la como uma fábula, sustentada por
uma máquina ideológica que nos mostra as vantagens de uma aldeia global, é um
processo perverso para a grande maioria da humanidade, que poderia ser
diferente, mas provavelmente nunca o será.
O papel do tradutor, nesse mundo
confuso e “líquido”, que se desfaz – liquefaz - e se refaz a todo momento, não
é somente o de levar e trazer as palavras desconhecidas a quem não as conhecem.
É também inserir-se nessa Babel que, mais do que falar literalmente várias línguas,
tem visões de mundo e realidades completamente diferentes, muitas vezes opostas
e divergentes. O tradutor deve colocar-se diante desse mundo globalizado de
forma não só a traduzi-lo, como também interpretá-lo.
Pois bem, sem a tarefa dos
tradutores não somente não teríamos condições de comercializar, como também de
conhecer as culturas dos “outros”, dos que pensam, falam, escrevem, diferente
de nós. Todo um universo de palavras, poesias, romances, discursos, teatro,
cinema estariam a uma distância abismal não fosse o trabalho, muitas vezes
anônimo, dos tradutores. Não leríamos Cem
anos de solidão, os alemães não leriam Grande
Sertão Veredas, os chineses não assistiriam Escrava Isaura, não teríamos diariamente a invasão dos blockbusters americanos na nossa TV, não
encenaríamos Bertold Brecht, não adoraríamos a Nouvelle Vague do cinema
francês, o mundo não conheceria Paulo Coelho! Claro, como em toda comunicação
humana, há as coisas boas e as não tão boas assim. Mas o fato é que sem o
trabalho solitário dos que trabalham nos bastidores o mundo seriam ainda uma
Babel incompreensível.
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade
líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
CORTEZ, Hernan. A
conquista do México. Porto Alegre: L&PM, 2011.
D’Aguir, Rosa Freire. Memórias
de tradutora. Entrevista a Marlova Assef e Dorothtée Bruchard.
Florianópolis: Escritório do Livro, 2004.
ECO, Umberto. Quase a
mesma coisa. Experiências de tradução. Rio de Janeiro: Record, 2007.
GOROVITZ, Sabine. Os
labirintos da tradução. Brasília: UNB, 2006.
SANTOS, Milton. Por
uma outra globalização. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2008.
TODOROV, Tzvetan. A
conquista da América. A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
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