Muitas são as formas de passarmos pelo mundo. Muitos são os caminhos, obstáculos, realizações. Mil são as nossas colinas diárias a serem transpostas. Do alto de cada uma delas, podemos observar nossos rastros olhando para trás e, adiante, contemplando o horizonte, o que queremos realizar.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Diários de campo, Relatos de Viagens, Livros-Reportagem, Jornalismo Literário[1]
Andréia T. Couto


Malinowski passou meses entre os Trobriandeses do Pacífico Sul e produziu o maravilhoso Os Argonautas do Pacífico Sul; Evan Pritchard, depois de viver tempos entre os somali nos presenteou com o livro Os Nuer; Lewis-Strauss, em visitas de pesquisa ao Brasil, fez nascer Tristes Trópicos; Antônio Cândido, convivendo com os caipiras de São Paulo, escreveu Os parceiros do Rio Bonito. Reed, em Os dez dias que abalaram o mundo, trouxe aos leitores os detalhes da revolução bolchevique inaugurando, para alguns, um misto de relato/reportagem a um tom que beirava o literário. Para outros, um brasileiro, Euclides da Cunha, já o fizera anos antes, com Os Sertões. Ryszard Kapuscinski, apesar de vinte anos de vivência pela África, pareceu não compreender muito de seu povo, pelo menos é que se percebe em Ébano, editado em 2005 pela Companhia das Letras (lançou recentemente um relato sobre a Índia); Marinovich e Silva reportam ao leitor os tempos trágicos do appartaid sul africano nos anos 1990, em O clube do bangue bangue (Companhia das Letras, 2003).
O que esses autores e livros têm em comum? Malinowski, Pritchard, Levi-Strauss eram antropólogos e de seus diários de observação de campo fizeram surgir clássicos da antropologia que deleitam leitores de qualquer área, curiosos de outros culturas e costumes. Cândido, sociólogo, através de uma linguagem clara, consegue aliar a objetividade acadêmica à prosa que beira a literatura. Não por acaso sua maestria com as palavras, aliada à observação, o levou ao campo literário, a cuja pesquisa se dedica até hoje. Reed, Cunha, Kapuscinski, Marinovich e Silva são jornalistas. O que os une é a destreza com que conseguiram, uns mais, outros menos, unir o senso de  observação à sensibilidade no trato com a palavra. E a meu ver o que poderia unir ainda Malinowski e Cândido foi serem ambos os autores dos dois títulos mais bonitos e expressivos que já encontrei até hoje. Penso que qualquer escritor gostaria de ter escrito algo que levasse esses títulos.
Em meio a esses autores, poderíamos colocar os relatos de viagem, essa saborosa literatura que leva os que, por alguma limitação, não podem percorrer os lugares visitados pelos autores, normalmente não somente “visitados”, mas também recheados de algo inusitado, de aventura, ou até mesmo de perigo. Entre nós, Amir Klink é um dos bons. Li Cem dias entre o céu e o mar, sua incrível travessia entre as costas africana e brasileira feita solitariamente em um pequeno barco assustadoramente pequeno para uma empreitada daquela envergadura. Lembro-me da data em que li: novembro de 1991. Desde então Klink realizou outras viagens de aventura, todas muito bem documentadas (e com barcos maiores e melhor equipados) e, embora Paratyi seja muito bom, Cem dias entre o céu e o mar é impressionante.
Todos aqueles que já realizaram pesquisa de campo na área acadêmica sabem bem o que é um caderno ou diário de campo. Por mais que os lap tops estejam tomando cada vez mais o lugar das pequenas cadernetas de anotações (os pesquisadores de hoje – os que conseguem financiamento, que fique bem claro - vão para campo munidos hoje de moderna tecnologia e os cadernos cederam lugar ao computador, mesmo porque o pesquisador precisa dele para “descarregar” suas fotos digitais) ainda não conseguiram dispensar totalmente o diário. O antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, de quem fui aluna no mestrado no curso de Antropologia Social, na Unicamp, e com quem aprendi muito do gosto pela pesquisa de campo, tem até mesmo um livro chamado Diário de campo, inspirado naturalmente nas suas inúmeras viagens de pesquisa pelo interior de Goiás e Minas Gerais. E com direito a poesias, pois Brandão também é poeta. E o diário de campo é isso: um misto de anotações objetivas das observações diárias da pesquisa (falas dos entrevistados, relatos, entrevistas; observações pessoais; números, tabelas; lembretes; fotos; colagem de recortes de jornal) com desabafos do pesquisador e inserções pessoais, muitas vezes uma espécie de “diário íntimo” (considerando-se que é à noite, de regresso de um dia inteiro de pesquisa, muitas vezes percorrendo enormes extensões, que se coloca em dia o diário, não é difícil imaginar o caráter intimista que ele pode trazer). Pois o “diário” nos acompanha às vezes por meses, conforme a duração da pesquisa, a ponto de tornar-se quase um objeto-fetiche. Não é à toa que de alguns surgiram bons e interessantes livros.
Assim nascem os relatos de viagem: desde a data da partida, o viajante desembolsa sua caderneta, ou caderno – ou, claro, o seu lap top – e vai aí, desde o aeroporto, lançando as primeiras impressões da viagem/aventura que se inicia. Às vezes começa-se o relato durante os preparativos da viagem, contando todos os pormenores da preparação. Quanto mais distante e desconhecido e do grau de dificuldade do acesso ao destino, mais demorada e minuciosa é o preparo. Normalmente começa com uma extensa lista do que levar, separada por assunto: medicamentos/vacinas; visto, documentação/ contatos, telefones e endereços de embaixadas e consulados locais; mapas, guias do lugar. A lista é enorme e tudo tem que caber em um espaço relativamente pequeno. Daí a importância fundamental da lista (dois itens básicos não devem faltar jamais: sandália de borracha e sabonete líquido. Viaje sem eles e saberá porque).
Da mesma forma que os diários de campo da pesquisa acadêmica, os relatos de viagem são sempre bem documentados e datados para que as verdades aí lançadas possam ser futuramente comprovadas. Muitas vezes são complementados com documentação bibliográfica sobre os lugares de sua passagem.
Inaugurado ou não por Reed, o fato é que foi a partir de A sangue frio, de Trumann Capote, que surge o jornalismo literário. Embora os métodos de Capote possam ser passíveis de serem contestados, seu livro nasceu sob a égide de um novo gênero de jornalismo ou de literatura ou de mescla dos dois. A partir de então a lista é exaustiva e ultimamente tem muito jornalista passando meses em terras distantes e “exóticas” para dali trazerem material que possa servir de matriz para um livro reportagem. Rentemente a Companhia das Letras lançou ...., de uma jornalista norueguesa que passou dois meses com uma família afegã. O lançamento do livro veio acompanhado de um processo que corre contra ela por parte do chefe do clã onde esteve hospedada, contestando a veracidade das afirmações que faz no livro. Também pela mesma editora, Uma temprada de facões, de Jean Hatzfeld, sobre o genocídio de Ruanda através de relatos de prisioneiros, lançado em 2005. Se são realmente “literários”, isso alguns deixam a desejar. O leitor que se interessar por esse estilo tem agora uma lista considerável a ser degustada durante as férias de verão. Boa viagem!



[1] Publicado na Ver. Griffe, fev. 2007

domingo, 2 de novembro de 2014


A Calopsita amarela


“Procuro uma calopsita amarela”.
Depois, um nome e um número de telefone para contato.

No meu trajeto voltando para casa, em uma praça no final da avenida, essa faixa me chamou a atenção. Calopsita...
Calopsita pra quê? Pra fazer o quê?
Ela fugiu?
Ou a pessoa está à procura de uma calopsita pra comprar?

Calopsita...é animal, vegetal ou animal?

Calopsita...é vegetal:
Um tipo de bromélia.
Do tipo que gosta de sombra, que não pode com sol.
Deve ser, amarela...se ao menos fosse verde, e com rajadas brancas...não haveria dúvida, é uma parente das bromélias, orquídeas, sei lá, nunca fui boa em classificar espécies de plantas, sei muito bem distinguir rosas, margaridas, cravos, dálias, lírios, jasmins, crisântemos, coisas assim populares, mas quando a lista se aprofunda em amarílis, anêmonas (que também pode ser um animal!), centáureas, narcisos, madressilvas, íris, prímulas, aí confesso minha completa ignorância.
Mas com esse nome, deve ser: primeiro, rara, segundo, da família das bromélias. Da frase constante na faixa pode-se também depreender que, se ele procura amarela significa que há outras, de outras cores.
Um famoso botânico, morador do bairro e pesquisador da universidade nas cercanias do lago onde a faixa se encontrava, me diria, “Sim, é mesmo uma planta, uma flor da espécie das caliceráceas. Uma planta rara, típica dos climas quentes e úmidos, coisa dos trópicos. Muito procurada. Pouco encontrada”. Daí o anúncio ansioso em um faixa no final de uma avenida movimentada de um bairro classe média alta, pois por ali passam pessoas viajadas, pessoas sábias, acadêmicos, biólogos, geólogos, pessoas que certamente teriam informações precisas sobre onde encontrar uma calopsita amarela. E se por acaso ela tivesse sido seqüestrada do jardim de uma casa, estas pessoas, com apenas um olhar de reconhecimento, saberiam informar ao angustiado solicitante sobre o paradeiro de sua famosa e ambiguamente desconhecida calopsita fujona.

Calopsita...
Calopsita amarela
Não, deve ser mineral, do tipo que brilha.
Calopsita, cassiterita, rubelita... É, como um cristal colorido: essa, a calopsita procurada, deve ser rara, como um belo, bem lapidado, reluzente e amarelo-alaranjado topázio.
A mulher foi dar uma volta ao redor do lago e, distraída, conservou no dedo o precioso anel com uma calopsita cravada um forma de cabochão que havia usado na noite anterior. Em uma das voltas, a pedra, não muito firme nas delicadas garras de ouro branco do solitário se desprendeu e, ao chegar em casa, horror! Só havia o aro com as garras escancaradas, como um ninho sem ovo.
Por isso o aviso de procura-se bem perto do lago, local onde as moças vão fazer suas caminhadas no final da tarde e as senhoras no início do dia.

Calopsita...
Não, é animal!
Alguma coisa assim, como um animal em extinção: um ser voador, um calóptero, aquele que tem lindas asas, ou, ao contrário, uma ave de asas horrendas e pontiagudas como um pterodátilo, ou então um animal das profundezas do oceano, ou uma espécie de cachalote, ou ainda algo que dá – ou dava – no fundo do mar. Dá para imaginar um diálogo entre oceanógrafos-pesquisadores-caçadores-de-tesouros: “Vamos embarcar no próximo Calipso para caçar a calopsita”.
Mas como podem as pessoas ser tão ignorantes na sua própria língua?
Que sejam ignorantes em alemão, vá lá, mas na sua língua, trazida há séculos do Lácio e aqui reproduzida com o auxílio de tantos outros voluntários lingüísticos.
(por que não se ensina mais latim e grego pra meninada de hoje? Acaso hoje é menos importante saber a origem etimológica da palavra calopsita que décadas atrás? Nesse ritmo, daqui um tempo basta saber uga, uga para designar todos os objetos, e a preciosa calopsita amarela vai ser pobremente apontada como uma uga-uga amarela).

Calopsita é um instrumento musical. Claro! Da família dos instrumentos de sopro. Uma variante da clarineta. Sua pronúncia onomatopaica já prenuncia o som que se desprende das formas arredondadas dos orifícios na madeira. E somente mãos finas e delicadas, acostumadas ao manuseio preciso e respeitoso desse instrumento musical podem tocá-la.
O anúncio foi sabidamente colocado à borda da praça que se avizinha ao lago, local de moradia de muitos músicos que por ali passam, todos estudiosos de música erudita que certamente conhecerão não só o paradeiro da perdida calopsita de som puro como poderão informar ao dono do anúncio onde poderá encontrar uma, caso esteja à procura de alguma para comprar com o mais sublime dos sons saindo da madeira amarelada que lhe especifica o nome: a calopsita amarela.

Mas alguém poderia me interromper bruscamente e me dizer: escute, por favor, como você nunca deu uma espiada em uma calopsita, nem quando criança?
- Como assim?!
- Ora, nunca mostraram a você uma calopsita, que, à semelhança de um caleidoscópio, através de um pequeno orifício poderia vislumbrar não só as mais diversas cores e formas que se compõem conforme seu movimento, mas também, através de um jogo de imagens, ter a sensação de que os objetos lhe saltam aos olhos, que você pode mesmo pegá-los no ar, como numa holografia? A calopsita lhe proporciona todo o prazer do caleidoscópio e ainda holograficamente! E a calopsita amarela faz isso mostrando ao espectador toda a gama de tons amarelos que já foram captados pelo olho humano! Uma preciosidade. É isso que poderia informar um sábio professor do instituto de artes próximo ao local onde a faixa foi colocada.

Mas não se assanhe. Todo o glamour anterior se esmaece diante da palavra final do nosso conhecido biólogo, professor doutor com pós doc em uma importante universidade de Niedersachsen, Alemanha:
“Calopsita, minha cara, é um vírus raro, que à semelhança dos coliformes, apresenta aparência cilíndrica, quando examinada na lâmina de precisos microscópios. Uma vez no organismo humano, ataca o fígado do indivíduo e faz com que muitos médicos, num primeiro diagnóstico, confundam a aparência amarelada do paciente como sendo ele um portador de hepatite. Para distinguir os dois tipos de pacientes, o pessoal médico costuma se referir aos portadores de calopsita como ‘Aquele é um [portador de] calopsita amarela’. Atualmente está sendo levada a cabo uma importante pesquisa sobre o vírus, portanto há a necessidade de se encontrar voluntários que apresentam o quadro de portadores da calopsita”.

Acabrunhada com tantas e importantes informações tão díspares diante da palavra misteriosa, paro diante da faixa tentando ainda encontrar uma resposta para as indagações não satisfeitas, mesmo após tantas explicações das quais, dadas as suas inequívocas procedências, não poderia duvidar. Divagando absorta em meio à profusão de calopsitas que se assanham na minha mente, não percebo alguém que se aproxima e pergunta:
- Então, alguma notícia da Calopsita?
- Perdão?
- Calopsita, a irmã loura do Calógenas, desaparecida há dois dias.
Aquilo foi demais. Ainda incrédula, viro as costas para o desconhecido e me afasto do local da faixa, disposta a resolver por mim mesma o mistério da calopsita amarela. E melhor do que ninguém para apaziguar minha curiosidade que o autor da faixa. Anoto o número do telefone e enquanto me dirijo para casa, penso que a calopsita bem poderia ser um ET. Isso.
Resolvo que a calopsita é um ET de olhos esbugalhados, de crânio liso, lustroso, fosforescente, boca redonda arreganhada, como um Munch pós moderno.
-Alô?
- Quem fala?
- .....
- Tenho uma Calopsita amarela.
- É mesmo?!!!
- É. Ela está na janela da minha sala, a boca grudada no vidro, os olhos enfiados em mim. O que eu faço?
- Boca?!!
Bateu o telefone na minha cara. Parece que desconfiou quando eu disse boca, talvez calopsita não tenha boca. Nem olhos. 


Minha mãe tem um apelido familiar romântico e singelo: Colina, diminutivo de Marcolina, nome que herdou em homenagem à avó materna.
Minha mãe, Colina, me deu a luz; e meu pai me apresentou as possibilidades de transpor mil delas.

O blog foi criado durante a finalização do projeto de um livro que havia escrito sobre uma pesquisa na África Central. O livro recebeu seu nome a partir dessa experiência única que durou quatro meses de viagens pelo interior de Ruanda, de conversas, entrevistas, pesquisas. Como toda obra que nasce de uma viagem - uma longa viagem, veio acompanhada também de alguns aspectos transformadores. Ninguém sai imune de uma viagem ao desconhecido, em terras distantes, com outro(s) idioma(s), culturas distintas, situações inusitadas. A transformação é evidente. Talvez nem tanto para os que nos rodeiam, mas profundo para quem vive a experiência. Todos deveriam fazer sua jornada, em algum momento da vida; os jornalistas, mais ainda.

A ideia seria abastecê-lo com material de cultura, compartilhando com os leitores a paixão pela literatura, principalmente.

As demandas profissionais fizeram com que o blog ficasse a meio do caminho e agora, após um tempo de amadurecimento sobre seu desenvolvimento, ele volta a respirar. A proposta literária continua a mesma, com um canal para apresentações de lançamentos, comentários, dicas de livros.