Muitas são as formas de passarmos pelo mundo. Muitos são os caminhos, obstáculos, realizações. Mil são as nossas colinas diárias a serem transpostas. Do alto de cada uma delas, podemos observar nossos rastros olhando para trás e, adiante, contemplando o horizonte, o que queremos realizar.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Resenha

Anton Tchekhov. Um bom par de sapatos e um caderno de anotações. Como fazer uma reportagem. Seleção e prefácio de Piero Brunello.  São Paulo: Martins Fontes, 2004, 159 p.


            Tchekhov provavelmente é mais conhecido do público por sua obra literária - foi dramaturgo, contista, crítico literário. No entanto, a obra Um bom par de sapatos... faz parte de uma pesquisa que realizou na tentativa de transformá-la em sua tese de doutorado em medicina. Durante três mês, percorreu a ilha de Sacalina, no extremo norte da Rússia, na costa oriental do império tzarista, para onde eram deportados os prisioneiros condenados por diferentes crimes e ali abandonados a trabalhos forçados. Isso porque o sistema prisional naquela época - meados do século dezenove - além de aplicar métodos bárbaros de castigos, como açoites, manter os presos acorrentados, as condições carcerárias eram desumanas. Doenças de todos os tipos, além de conviverem com piolhos e pulgas, viveram em cárceres frios e úmidos - em se tratando do norte da Rússia isso era realmente terrível - faziam parte do cotidiano dos presos, sem contar com a alimentação esparsa e nojenta, nas palavras do próprio autor.
            Mas por que Tchekhov passou esse tempo percorrendo as aldeias da ilha? Porque queria, a partir da observação do ambiente e das pessoas, entrevistas com presos e funcionários do governo, conversas com habitantes locais e prisioneiros, visitas aos aldeãos, recenseamento dos presos, consulta de documentos prisionais, fazer um completo levantamento sobre as condições de vida e saúde dos presos de Sacalina e transformar todos os dados disponíveis em uma tese de doutorado. Durante meses percorreu a ilha sob a neblina constante, o vento úmido e gelado, a chuva, andou de barcos, atravessou rios e lodaçais, e passou frio. Comeu o que havia disponível para ele e com os habitantes repartir seu modo de vida, suas vidas sem esperança e as chances mínimas de sobreviver em um local sem cores, sem sol e gelado.
            Antes de partir, preparou cuidadosamente sua viagem, consultando material sobre viagens de pesquisa, expedições para áreas distantes e inóspitas do planeta, o que deveria levar, como deveria agir. “De Sacalina, Tchekhov voltou com uma caixa cheia de papéis: 7 mil e quinhentos formulários do recenseamento, pequenos objetos recebidos dos detentos, um caderno de anotações, ordens do dia do comandante da ilha, petições e cartas pessoais”.
            Como todos os que partem e voltam de suas viagens de campo, a expectativa  é de começar logo e trabalho, de escrever e utilizar todo o volume de documentos trazidos da pesquisa de campo. Nesse momento Tchekhov se vê diante de uma dilema que aflige a todos os que passam por experiências semelhantes: por onde começar? Como colocar no papel o que viram, como condensar em palavras sofrimentos, desgraças, maus tratos? Podemos imaginar John Hersey, por exemplo, sentado à sua mesa de trabalho de volta de Hiroshima após entrevistas as vítimas da explosão da bomba atômica: qualquer coisa que dissesse soaria menor diante do horror pelo qual passaram os sobreviventes. A Suvorin, seu editor e amigo, escreveu que “sentia uma sensação de bem-estar, sentado finalmente à sua escrivaninha. Mas não conseguia escrever. Sacalina parecia-lhe um inferno. E ao seu redor, tudo continuava como de costume. Os jornais exaltavam o patriotismo, mas como se manifestava o amor à pátria? Falavam de justiça e de honra: mas não havia justiça, e, quanto ao conceito de honra, não ia além do ‘orgulho do uniforme’, ‘uniforme este que serve de enfeite vergonhoso em nossos bancos de acusados’. No entanto, ia começar a trabalhar, ia vencer a preguiça”.
            Tchekhov foi além: em Petersburgo, recolheu fundos para abrir hospitais em Sacalina e enviar livros para a ilha. Fez o que poucos fazem, quando voltam com seus dados de campo recolhidos para seus escritos. Raros são os que dão algum tipo de retorno às comunidades pesquisadas.
O livro trata, entre outras coisas, da dificuldade de escrever, de ordenar os dados compilados em uma viagem de pesquisa de campo, além de abordar diversos aspectos práticos de uma reportagem extensa.
Como afirma Brunello, editor  do livro, “o modo de fazer de Tchekhov poderia ser de ajuda ainda hoje. Suas sugestões são úteis não só àqueles que fazem longas viagens, mas também àqueles que observam e tentam compreender a realidade onde vivem”.




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