Resenha
Anton Tchekhov. Um bom par de sapatos e um caderno de
anotações. Como fazer uma reportagem.
Seleção e prefácio de Piero Brunello. São
Paulo: Martins Fontes, 2004, 159 p.
Tchekhov provavelmente é mais
conhecido do público por sua obra literária - foi dramaturgo, contista, crítico
literário. No entanto, a obra Um bom par
de sapatos... faz parte de uma pesquisa que realizou na tentativa de
transformá-la em sua tese de doutorado em medicina. Durante três mês, percorreu
a ilha de Sacalina, no extremo norte da Rússia, na costa oriental do império tzarista,
para onde eram deportados os prisioneiros condenados por diferentes crimes e
ali abandonados a trabalhos forçados. Isso porque o sistema prisional naquela
época - meados do século dezenove - além de aplicar métodos bárbaros de
castigos, como açoites, manter os presos acorrentados, as condições carcerárias
eram desumanas. Doenças de todos os tipos, além de conviverem com piolhos e
pulgas, viveram em cárceres frios e úmidos - em se tratando do norte da Rússia
isso era realmente terrível - faziam parte do cotidiano dos presos, sem contar
com a alimentação esparsa e nojenta, nas palavras do próprio autor.
Mas por que Tchekhov passou esse
tempo percorrendo as aldeias da ilha? Porque queria, a partir da observação do
ambiente e das pessoas, entrevistas com presos e funcionários do governo,
conversas com habitantes locais e prisioneiros, visitas aos aldeãos,
recenseamento dos presos, consulta de documentos prisionais, fazer um completo
levantamento sobre as condições de vida e saúde dos presos de Sacalina e
transformar todos os dados disponíveis em uma tese de doutorado. Durante meses
percorreu a ilha sob a neblina constante, o vento úmido e gelado, a chuva,
andou de barcos, atravessou rios e lodaçais, e passou frio. Comeu o que havia
disponível para ele e com os habitantes repartir seu modo de vida, suas vidas
sem esperança e as chances mínimas de sobreviver em um local sem cores, sem sol
e gelado.
Antes de partir, preparou
cuidadosamente sua viagem, consultando material sobre viagens de pesquisa,
expedições para áreas distantes e inóspitas do planeta, o que deveria levar,
como deveria agir. “De Sacalina, Tchekhov voltou com uma caixa cheia de papéis:
7 mil e quinhentos formulários do recenseamento, pequenos objetos recebidos dos
detentos, um caderno de anotações, ordens do dia do comandante da ilha,
petições e cartas pessoais”.
Como todos os que partem e voltam de
suas viagens de campo, a expectativa é
de começar logo e trabalho, de escrever e utilizar todo o volume de documentos
trazidos da pesquisa de campo. Nesse momento Tchekhov se vê diante de uma
dilema que aflige a todos os que passam por experiências semelhantes: por onde
começar? Como colocar no papel o que viram, como condensar em palavras sofrimentos,
desgraças, maus tratos? Podemos imaginar John Hersey, por exemplo, sentado à
sua mesa de trabalho de volta de Hiroshima após entrevistas as vítimas da
explosão da bomba atômica: qualquer coisa que dissesse soaria menor diante do
horror pelo qual passaram os sobreviventes. A Suvorin, seu editor e amigo,
escreveu que “sentia uma sensação de bem-estar, sentado finalmente à sua
escrivaninha. Mas não conseguia escrever. Sacalina parecia-lhe um inferno. E ao
seu redor, tudo continuava como de costume. Os jornais exaltavam o patriotismo,
mas como se manifestava o amor à pátria? Falavam de justiça e de honra: mas não
havia justiça, e, quanto ao conceito de honra, não ia além do ‘orgulho do
uniforme’, ‘uniforme este que serve de enfeite vergonhoso em nossos bancos de
acusados’. No entanto, ia começar a trabalhar, ia vencer a preguiça”.
Tchekhov foi além: em Petersburgo,
recolheu fundos para abrir hospitais em Sacalina e enviar livros para a ilha.
Fez o que poucos fazem, quando voltam com seus dados de campo recolhidos para
seus escritos. Raros são os que dão algum tipo de retorno às comunidades
pesquisadas.
O livro trata,
entre outras coisas, da dificuldade de escrever, de ordenar os dados compilados
em uma viagem de pesquisa de campo, além de abordar diversos aspectos práticos
de uma reportagem extensa.
Como afirma
Brunello, editor do livro, “o modo de
fazer de Tchekhov poderia ser de ajuda ainda hoje. Suas sugestões são úteis não
só àqueles que fazem longas viagens, mas também àqueles que observam e tentam
compreender a realidade onde vivem”.