Muitas são as formas de passarmos pelo mundo. Muitos são os caminhos, obstáculos, realizações. Mil são as nossas colinas diárias a serem transpostas. Do alto de cada uma delas, podemos observar nossos rastros olhando para trás e, adiante, contemplando o horizonte, o que queremos realizar.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O País das mil colinas
Esse nome é uma homenagem ao país que visitei pela primeira vez em 2004, mas que já conhecia por inúmeras leituras de 2003. Porém, bem antes, em 1994, tomei conhecimento do que acontecia lá através de pequenas notas nos jornais. Mais tarde, estudando na França, conheci a pessoa que formalmente me apresentou a Ruanda: Alexia Mokonzi.
Em 1998 eu fazia meu doutorado Paris, quando, por um feliz acaso, conheci Alexia. Ela tinha na época cerca de 70 anos e vivia em Paris como refugiada, após ter sido salva como por milagre do genocídio que dizimou sua família, um total de 15 pessoas. Através da ajuda humanitária, conseguiu sair do país em meio à tragédia e chegou a Paris com um grupo de 10 pessoas, em agosto de 1994. A partir de então, passou a viver em Chateau Rouge, um bairro do norte de Paris conhecido por abrigar uma grande população de árabes e africanos.
Quando a conheci, fazia exatos quatro anos que vivia em Chateau Rouge, que foi minha segunda morada, durante quatro meses em Paris. Um dia, lavando minha roupa na lavanderia do bairro, sentei-me a esperar que a máquina desse conta de tudo, me preparando para ficar ali por longos minutos. Mal abri o livro que levava comigo, entrou uma senhora de semblante sóbrio e altivo, com uma roupa de algodão colorida por baixo do grosso suéter. Trazia um tecido enrolado na cabeça, da mesma estampa que seu vestido, à moda africana. Fiquei imaginando a qual país pertenceria e o que a levava a estar naquela cidade tão inóspita aos africanos, mesmo àqueles vindos de países onde os franceses levaram a sua língua e a impuseram sobre os idiomas nacionais. Ela vinha carregada de uma grande sacola de roupas, que trazia com dificuldade, e assim que a vi, levantei-me para ajudá-la. Ela parecia não estar habituada a gentilezas e sorriu para mim. A partir de então iniciamos uma longa conversa, que se estendeu para outros dias e, quando voltei para o Brasil, deixei para trás uma grande amiga, com quem passei muitas horas de conversas, principalmente sobre seu país, encravado entre colinas na África Central.
Entre tantas histórias, Alexia me contou uma que me prendeu particularmente. Durante muitas noites nos sentávamos com uma garrafa cheia de chá de Ruanda e ela punha-se a narrar e narrar histórias. Mas havia uma que eu considerava como uma narrativa das mil e uma noites, quando Alexia se transformava em minha Sherazade. Quando não podia, por algum motivo, ir até sua casa, ficava aflita por saber o continuar da história. Até que, antes da minha volta, Alexia chegou ao final. Até hoje não sei se o que me contou é verídico ou não. Quando fui a Ruanda pela primeira vez, comecei a indagar as pessoas sobre os fatos, mas ninguém sabia de nada. Mas também, já se haviam passados tantos anos e nesse tempo, houve o genocídio, que entre vidas humanas, destruiu também muito da memória do país.
Mas verdadeira ou não, a história, vinda de uma mulher idosa, que havia presenciado o horror de ver sua família ser morta a golpes de facão na sua frente, era envolvente. Autodidata - aprendeu francês pela convivência com o Doc, o médico de quem me falaria durante um ano, Alexia tinha o dom narrativo dos povos africanos, que durante milênios transportaram de geração a geração a história dos seus reinados. Ela era parteira e conviveu com ele, ajudando-o sempre que possível, quando não havia médicos ou enfermeiros nos locais e ele estava sobrecarregado de trabalho.
O mais incrível era a forma da narrativa de Alexia, que fazia digressões, mudava o foco narrativo, inseria contextos diferentes, além da memória fantástica e da quantidade inacreditável de informações que guardou, para uma pessoa quase analfabeta. Não é segredo a memória tampouco a capacidade de narrar história dos povos africanos, que despossuídos da grafia para documentar sua história, recorriam à memória para passar seu legado histórico para as gerações futuras.
Como narradora, ela era imbatível e podia rivalizar com a própria narradora das mil e uma noites. Com suas histórias, poderia ter salvo seu país, como Sherazade salvou as mulheres do seu.
Pedi a Alexia se poderia escrever o que me contava e ela disse que sim, claro, afinal, era preciso guardar a memória do Doc, que tanto fez pelo seu país. Ela não sabia escrever, portanto não poderia fazer isso e ficaria muito grata se eu escrevesse o que ela ia contando. Eu poderia fazer como quisesse, escrever enquanto ela falava, ou gravar. Optei pela segunda possibilidade, mesmo porque queria prestar atenção a todos os detalhes e não queria me perder anotando sua fala.
As fitas ficaram durante muito tempo guardadas, pois o trabalho e os estudos impuseram outras prioridades e nunca podia pegar as fitas e transcrevê-las.
Voltei a Paris em 1999, mas dois meses antes, Alexia havia retornado a Ruanda, pois com a ajuda de uma instituição alemã, conseguiu localizar alguns parentes e preferiu voltar, pois estava doente e queria morrer na sua terra. Consegui seu endereço no país africano, mas quando estive lá em 2004, e depois de muito procurar, localizei o local onde viveu seus dois últimos anos - morreu em 2003 - mas não encontrei mais vestígios dela, a não ser uma modesta sepultura, que me indicaram como sendo dela, embora não houvesse nome ou qualquer identificação. Também soube que os parentes não eram propriamente parentes, mas pessoas conhecidas de seus familiares.

Somente recentemente tomei a tarefa de transcrever as fitas de Alexia. A visão daquela quantidade de fitas, narradas em um francês com forte sotaque e, em muitas vezes, com palavras em kirnyawanda, e em um gravador de recursos técnicos precários, me desanimava. Na maior parte do tempo, tinha que voltar inúmeras vezes o gravador para tentar entender o que dizia. A narrativa era intercalada de comentários, interferências, ofertas de mais chá.

Então comecei. O que vem a seguir é parte do primeiro episódio narrado por ela. Alexia é, na maioria das vezes, a narradora, em terceira pessoa; em outras, dá a palavra ao Doc, que narra em primeira pessoa e outras ainda, ao Alemão, personagem que, segundo ela, é tão importante quanto o Doc. No início, tem-se a impressão que a história gira em torno do médico, mas trata-se de fato, de um triângulo: Doc, a francesa Isabelle e o   Alemão. O núcleo da história se passa em meio às colinas de Ruanda, mas em alguns momentos se desloca para outros lugares. Quando indaguei como ela ficou sabendo de tantos detalhes que não presenciou, disse simplesmente que o Doc contara a ela.
Alexia não deu nome à sua narrativa, mas desde que comecei a ouvi sua história, me transportei para os locais dos acontecimentos e foi impossível não ligar a história às colinas de Ruanda. Assim, denominei a história de Além das mil colinas, pois ela sempre dizia que a história começava Au délà des Mille colines. Vamos a ela.

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