Para a banca de
TCC de Letras O universo
feminino de Clarice Lispector na obra Laços de família,
uma análise do conto Amor
A obra de Clarice Lispector, de tão
complexa, já deu origem a inúmeras dissertações de mestrado e teses de
doutorado. O universo feminino retratado por ela vai além do lugar comum lido
nas linhas e entrelinhas de seus romances e contos. Compreender a complexidade
desse enredado universo significa mergulhar nas profundezas do mundo simbólico
criado por ela para falar de amor, desejo, solidão, tristeza, frustração,
prazer. Ousar fazer esse mergulho o mais profundo possível talvez seja a chave
para a compreensão inicial dessa fabulosa escritora.
Análise do conto Amor, de Clarice Lispector
-
Andréia T. Couto
A análise a
seguir refere-se ao conto Amor, de Clarice Lispector. Esse conto admite várias
leituras e análises e a que segue privilegia uma viagem ao interior da
psicologia feminina, representada aqui pela personagem Ana.
Em um primeiro
momento, após uma leitura desavisada, poderíamos imaginar Ana como a
representação do cotidiano feminino, seu universo reduzido ao vaivém da rotina
que chega a exasperação. Ana parece, em algum momento, se dar conta dessa
rotina sufocante, mas, como quem varre a sujeira para debaixo do tapete, ela
empurra a reflexão para adiante.
Uma leitura
mais apurada conduz, através da análise estilística, das figuras utilizadas por
Clarice, para uma inquietação mais profunda: Ana não é somente uma dona-de-casa
massacrada – embora às vezes somos levados a acreditar que ela não percebe –
pela rotina “feliz” do seu casamento.
A narrativa
nos conduz para uma espécie de crescendo: tem início como se conduzisse o
leitor por uma via já esperada, a personagem “certinha” por fim chega, através
de uma ruptura, a consciência de que sua vida a oprime. Mas a opressão não é só
pela rotina. Há algo mais por trás da inquietação de Ana. O clímax é atingido
no Jardim Botânico, e, já em casa, ela continua a ter as sensações
experimentadas no jardim.
A personagem
Ana nos é apresentada como uma mulher comum, que vive a rotina de seu cotidiano
sem sobressaltos, mas também sem reflexão. Talvez, porque em um momento, ela
diz: “o que chamara de crise viera depois”. Isso pode ser um indício de que
algo já a incomodava, mas não sabia o que era, ou não sabia – ou não ousava –
nomear.
Ana vive na
ordem do seu mundo, organizando-o, limpando-o não para si, mas para a sua
família. A sua tarefa que nunca tem fim, e a sua punição - “De manhã acordaria
aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e
sujos, como se voltassem arrependidos”. Mas aceita, não reclama, pois esse é o
seu destino, destino de mulher “por caminhos tortos viera a cair num destino de
mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado”. E nada mais
prosaico, normal, do que uma família “normal” – “O homem com quem casara era um
homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros”. Verdadeiros,
normais. Como parecia a ela viver sem felicidade, felicidade que não se
encontra na normalidade. A família a qual pertencia era uma família,
normal, que cabia perfeitamente na
invisibilidade na qual viviam. Não enxergar e não ter problemas, e não refletir
sobre os problemas. Ana não vê as pessoas que gravitam ao seu redor porque não
quer vê-las, não quer enxergar, refletir sobre suas inquietações. Mas é
justamente o cego que vem lhe abrir os olhos. Ana não enxergava o que não
queria ver. A vida de adulto que escolhe e vive a submerge para longe da
realidade. Quando termina os seus afazeres, quando está tudo apaziguado, se
sente vazia, não necessitada. No lar impecável, nessa hora, sua presença se
junta à composição dos objetos, na sua ordem, na sua inutilidade: “Sua
precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa
estava vazia sem precisar mais dela”.
O fim da tarde
traz o movimento novamente, a necessidade da sua presença na organização de
tudo. “Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração”. Também vibra o
bonde nos trilhos, ainda nesse ponto a vibração é tranquila e o bonde segue nos
“trilhos”, assim como sua vida, não descarrila, segue tranqüila sempre pelos
mesmos caminhos, pois o que está nos trilhos, está nos eixos, correto, linear.
No entanto, em certo momento, o bonde vacila, e segue então para ruas mais
largas, sintomaticamente ‘ampliando’ seu caminho - “O bonde vacilava nos trilhos entrava em
ruas largas”. Abre-se o horizonte, as ruas se alargam, algo se prenuncia, a
viagem para dentro de si mesma toma agora um sentido mais específico e podemos
começar a perceber o que comove Ana – “Logo um vento mais úmido soprava
anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. As figuras
utilizadas pela autora, a partir daqui, começam a ganhar uma conotação mais
específica.
Assim como o
bonde, Ana vacila ao se dar conta do cego. As ruas se alargam diante do bonde
como o horizonte de Ana se amplia ante a visão do cego.
O fim do
horário instável traz também a resignação de sua vida morna – “Ana respirou
profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher”. A mulher
que aceita, a mulher resignada.
Ana,
acostumada ao seu mundo normal, verdadeiro, de pessoas invisíveis, incomoda-se
com o cego. E incomoda-se pelo fato de ele mascar chiclete. Ele, no incômodo de
sua situação, aparenta tranquilidade através de um gesto banal de mascar
chiclete (gesto banal X dificuldade) “O cego mascava chicles...Um homem cego
mascava chicles”. Ele, apesar da sua dificuldade, aparentava tranquilidade,
através desse gesto banal. O incomodo de Ana ante a visão do cego vem do fato
de que ela é chamada a ver o que não quer, não quer pensar ou refletir sobre
sua vida, seus problemas e a realidade que a cerca, ou sobre si mesma:
“inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê”.
O incômodo
cresce à medida que ela o observa, mas ela observa a si mesma. Deixa cair a
sacola de compras e algo nela se quebra, os ovos. Nela também algo se rompe. Os
ovos são os únicos objetos dentro da sacola a se quebrarem, por serem os mais
frágeis. São eles que chamam a atenção dos passageiros do bonde, pela sujeira,
pela viscosidade amarelada: “Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de
jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede”. Ana sente
vergonha disso. “Ana deu um grito”; “Uma expressão de rosto, há muito não
usada, ressurgira-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível”.
Esse é o
momento de ruptura e daqui para frente o clima do conto continua a subir, como
na jornada do herói. Esse é o ponto da ruptura, algo se rompe – ou se ascende
nela, ou ainda, se sente sacudida por uma sensação que lhe e despertada naquele
momento. “A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a
tricotara”. “O mal estava feito”.
Ana sufocava,
“respirava pesadamente”.
Ana havia
tentado em vão pensar sobre sua vida. Sufocava suas apreensões. O que chamava
de crise - Ter que assumir o prazer. “O que chamara de crise viera afinal. E
sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas sofrendo
espantada”. A crise que viera, a busca pelo prazer, mas um mundo escuro,
misterioso, mas que procurava com sofreguidão. “Um cego mascando chicles
mergulhara o mundo em escura sofreguidão”.
Ana entra no
Jardim Botânico. A natureza é na literatura, acolhedora, protetora, inocente,
bucólica. O jardim Botânico é cercado, fechado, protegido. Ana não vai para o
mar, aberto, amplo, claro, mas para o Jardim Botânico, cercado, úmido, escuro.
Um útero. Estaria protegida ali. “Andando um pouco mais ao longo de uma sebe,
atravessou os portões do Jardim Botânico”; “...o silêncio regulava sua
respiração. Ela adormecia dentro de si”. Dentro do jardim, Ana descobre um
mundo de sensações que não desconhecia, mas que ganham agora um novo sentido,
um novo prazer: “Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas
surpresas entre os cipós”. As sensações vêm de cheiros, tato, ruídos. “De onde
vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada. Como por um zunido de abelhas e
aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais”.
Suave também
são os pelos de um gato que chama sua atenção. Um poderoso gato, de pelos
macios. A figura do gato, ambivalente, representa a figura masculina, grande,
mas macio; tem medo dele, mas é suave; misterioso, mas belo, tem medo, por suas
unhas afiadas, mas é atraída pelo mistério; gato representa traição, mas também
sensualidade. As contradições da natureza estão na própria Ana e ao se dar
conta disso, sente-se como que numa emboscada. “Fazia-se no jardim um trabalho
secreto do qual ela começa a se aperceber”. O ‘trabalho’ da natureza, da vida,
da fecundidade. Segue-se um trecho em que a exuberância da natureza é
contraposta ao seu lado escatológico. Para reproduzir-se, a natureza deve
imiscuir-se com a podridão do reino, com a decomposição, com a viscosidade, com
o muco, com o visco. “Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia
no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros
adormecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa
rumorejavam as águas” .
Ana observa em
êxtase as atividades do jardim. As figuras observadas por ela nos conduzem a um
outro jardim, o do pecado original: “No tronco da árvore pregavam-se as
luxuosas patas de uma aranha. As luxuriosas aranhas grudadas nos troncos da
árvore. As ações perpetradas no Jardim Éden-Botânico deixam de acabrunhá-la, já
não a chocam: “A crueza do mundo era tranqüila”. Na sua descoberta – do prazer
– a idéia que tinha antes do mundo se desfaz, desliga-se da culpa. “O
assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos” .
A seguir as
referências seguem no mesmo caminho. A repressão sexual de Ana, estabelecida
através de uma resistência, fortalecida pela repressão no início, acaba com a
entrega no Jardim Botânico. A ‘aceitação’ de Ana, a sua vida ao seu cotidiano,
e a aceitação da sua condição de repressão, de não prazer. O conservadorismo,
que ainda guarda, é representado pelas figuras de nojo, asco, mas que começa a
se desfazer a partir do momento em que associa o nojo ou asco com entrega,
prazer, fascínio, volúpia, apetite. “Era um mundo de se comer com os dentes”,
volúpia e promiscuidade de dálias e tulipas, de “troncos percorridos por
parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse a
entrega – era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante. A repressão, o
nojo, precedia a sua entrega ao prazer. Ana viveria essa contradição.
“O mundo era
tão rico que apodrecia”: a exuberância da natureza mostra sua face de fartura.
Como o ciclo da vida, quanto mais flores, mais frutos, mais folhas, mais fértil.
O Jardim do
Éden, o mundo do pecado, o mundo de sexo que leva ao prazer e à culpa. Ana
chega assim à imagem do Inferno. “O jardim era tão bonito que ela teve medo do
Inferno”. A descoberta do prazer faz temer porque associa o prazer ao pecado.
“Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e
ela sentia nojo. “Ela amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo”.
Segue-se uma série de associações desse tipo; o filho, que nasceu a partir de
um ato do qual tinha nojo. A seguir fala das ostras, que tem também uma
associação com o sexo feminino, como em espanhol a palavra concha popularmente
se refere-se ao órgão genital feminino: “Do mesmo modo como sempre fora
fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da
verdade lhe provocava, avisando-a” . O que seria essa aproximação da verdade da
qual tinha asco? Do seu marido verdadeiro.
Ruptura feita,
clímax atingido, o conto “desce” a ladeira no seu movimento de volta ao ponto
de estabilidade. Após as “descobertas”, reflexões ou aceitações, ou
experiências, Ana volta a si e ao cotidiano, mas não sem ser tocada agora pelas
“coisas da natureza”, pois não tinha mais volta. Não podia mais fugir de si
mesma e de suas descobertas. “Não havia como fugir. Os dias que ela forjara
haviam-se rompido na crosta e a água escapava”.
A água passou
das medidas, transbordou, as sensações represadas, o desejo reprimido escapam, jorram para fora. Ana confronta-se
com seu próprio prazer: “Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la.
De que tinha vergonha? E que já não era mais piedade, não era só piedade: seu
coração se enchera com a pior vontade de viver”. Assumir o prazer: “Um cego me
levou ao pior de mim mesma”. De volta a sua cozinha, Ana agarra-se aos objetos
do seu cotidiano, e as ações da natureza continuam ao seu redor com seus atos
lúbricos “havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas
mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na sua cozinha”. Ana repetia em
casa suas experiências no Jardim Botânico.
De volta à
normalidade da família e das pessoas invisíveis, Ana se reúne ao redor da mesa
com todos felizes em não enxergar as anormalidades, cujo único tremor é o do
avião que passa estremecendo talvez as vidraças da janela. O marido que a
conduz, à noite, e o marido verdadeiro, na sua tranqüilidade morna. Estaria ele
pronto para aceitar as transformações de Ana?